NEUROCIÊNCIAS E MEDITAÇÃO

A difusão de Mindfulness nas áreas de Saúde:
Benefícios e cuidados, na perspectiva da Psicologia Budista

Arthur Shaker
Núcleo Neurociências, Mindfulness e Saúde


            Este texto se inspira no Simpósio que proferimos sobre este tema, junto com a equipe do Núcleo Neurociências, Mindfulness e Saúde, no II Congresso Internacional de Mindfulness, realizado em junho 2015, na UNIFESP.
            Desde há três décadas, a prática de Mindfulness para o lide de transtornos mentais e físicos tem se difundido amplamente nas áreas de Saúde. Médicos, psiquiatras, psicólogos e vários outros profissionais de Saúde têm se interessado e aplicado essa prática, como complemento aos vários tratamentos fármacos e psicoterapêuticos.
Como, na perspectiva da Psicologia budista, o treinamento de Mindfulness se coloca, como se interrelaciona com as atuais práticas de Mindfulness nos contextos clínicos, e quais alertas podem ser feitos?  Quais seus eventuais limites e riscos de empobrecimento, em relação aos propósitos maiores sustentados pela Psicologia budista?
            Coube a Jon Kabat-Zin, da Universidade de Massachussets, o pioneirismo de abrir essa propícia perspectiva prática. Conjugando, da psicologia budista o treinamento de Mindfulness, com exercícios de yoga e dinâmicas de diálogos em grupo, formulou um programa de treinamento de oito semanas, o MBSR (Mindfulness Based Stress Reduction).  Os benefícios verificados nos estados mentais dos pacientes meditadores participantes do Programa, em comparação com os não-meditadores, inspiraram essa difusão para aplicação em outras sintomáticas, muitas vezes resistentes à superação pelos métodos fármaco-psicoterapeuticos, como a ansiedade, depressão, síndrome de pânico, transtorno- obsessivo-compulsivo, obesidade, fibromialgia, entre outras.
            Gradualmente, se irradiou para formulações de outras práticas psicoterapeuticas ocidentais, como o DBT (Terapia Dialético-Comportamental), ACT (Terapia de Aceitação e Compromisso), MBCT (Terapia Cognitiva Baseada em Mindfulness). Com formatos próprios, esses vários modelos de aplicação têm participado de inúmeras pesquisas, em que se busca avaliar, a partir de certos parâmetros empírico-científicos, os efeitos da aplicação             do treinamento de Mindfulness a curto, médio e longo prazo, comparando com praticantes de longa, curta experiência em Mindfulness, e os que não praticam.
            O termo “Mindfulness” é uma tradução, na língua inglesa, do termo original Sati, da língua páli, em que há 2500 anos, Buddha transmite seus ensinamentos. Uma das possíveis significações para Sati seria consciência, atenção e rememoração. Voltaremos mais adiante para uma importante reflexão sobre as implicações desse termo e suas traduções-aplicações. A primeira tradução de dicionário teria datado de 1921 (1). Kabat-Zinn define Mindfulness como “a consciência que surge de prestar atenção intencionalmente no momento presente, e sem julgamento, às experiências que surgem em cada momento” (2).
            As avaliações dos benefícios do treinamento de Mindfulness nos transtornos psico-físicos provêm, de um lado, das evidências trazidas pelos que o experienciam nos contextos das áreas de Saúde, e, por outro lado, das evidências nas pesquisas da Neurobiologia. Há uma vasta e variada literatura sobre o campo de estudo neurobiológico. Em seu texto “Neurobiologia del Mindfulness” (3), Michael T. Treadway e Sara W. Lazar nos apresentam ricos aportes. Segundo os autores, o treinamento implica em mudanças nos recursos atencionais, com seus subprocessos subjacentes, que têm merecido diversas pesquisas. Três seriam os ângulos envolvidos: estar alerta (ser consciente de um estímulo); atenção sustentada; monitoramento de conflito (permanecer centrado em um estímulo, apesar da presença de um estímulo que distrái-entra em conflito). Observa-se nos praticantes uma diminuição da habituação (tendência a uma atividade neuronal reduzida em resposta a um estímulo dado, se este se repete muitas vezes).
            Quais seriam os efeitos de Mindfulness na atividade neuronal?  Segundo Treadway e Lazar, um ângulo seria aqueles advindos das eletroencefalografias dos estados meditativos. Os resultados parecem, entretanto, ser discrepantes, talvez porque diferentes estilos de meditação podem produzir padrões determinados. Nos estados de meditação de relaxamento há uma associação do aumento das ondas delta e teta; já nos estados de meditação de concentração e Mindfulness há uma associação do aumento das ondas alfa e beta 1, e mais especificamente na meditação de Mindfulness maior alfa e beta 1 que o de concentração. A eletroencefalografia teria um inconveniente: é muito limitada a informação espacial (sobre de qual parte do cérebro procede a atividade observada).
            Já na fMRI (imagens por ressonância magnética funcional) e PET (tomografia por emissão de  pósitrons), a resolução espacial é excelente, mas não temos informações sobre os diferentes tipos de ativação dos neurônios.  Mas é possível observar:
1.      Ativação do córtex pré-frontal dorso lateral (DLPFC), zona associada com as funções executivas, tomadas de decisões e a atenção;
2.      Maior ativação no córtex cingulado, na subdivisão anterior (ACC), papel fundamental na integração da atenção, motivação e controle motor. Na subdivisão ACC, a área superior relaciona-se às tarefas carregadas emocionalmente; a área dorsal, às tarefas cognitivas. As diferenças observadas estariam correlacionadas ao dado empírico de se tratarem de monges (menor ativação no ACC, pela capacidade maior de manter a atenção), em relação a experientes leigos (mais atividade no ACC), devido ao menor desenvolvimento da capacidade de manter a atenção, em comparação com os não-praticantes.
3.      Por último, haveria indicações de que o córtex insular ou ínsula também se ativa durante a meditação: “A ínsula se associa à interocepção, ou soma de sentimentos viscerais e instintivos que experimentamos em um momento dado, e também é proposta como a principal região do cérebro implicada no processamento de sensações físicas passageiras, contribuindo assim à nossa experiência de ‘si mesmo’” (Craig, 2004). Uma hipótese que explicaria a maior ativação da ínsula durante a meditação é que refletiria a atenção cuidadosa do meditador pelo aumento e descenso de sensações internas. A subregião da ínsula identificada nesses estados também está muito ligada em várias psicopatologias (Phillips, Drevets, Rauch e Lane, 2003). A matéria cinzenta desta área é significativamente menor entre os pacientes com esquizofrenia, em comparação com os controles (Crespo-Facorro et al, 2000; Wright et al, 2000). Também se observa atividade insular entre sujeitos com depressão e sadios durante a indução de um estado de tristeza (Liotti, Mayberg, McGinnis, Brannan e Jerabek, 2002), e ao experimentar dor (Casey, Minoshima, Morrow e Koeppe, 1996) ou desgosto (Wright, He, Shapira, Goodman e Liu, 2004). Alguns estudos também têm destacado o papel da ínsula nas emoções geradas internamente (Reiman, Lane, Ahern e Scwartz, 1997), assim como durante a culpa (Shin et al, 2000). Esses estudos sugerem que as anomalias na função insular podem desempenhar um papel essencial em vários transtornos psiquiátricos.
Além das regiões do cérebro que são ativadas na meditação, “também pode utilizar-se as técnicas de neuroimagem para identificar diferenças específicas na estrutura do cérebro. Em 2005, nosso grupo publicou um estudo que apoiava com firmeza a hipótese de que a prática de Mindfulness tem efeitos a longo prazo na estrutura cerebral. Vinte meditadores de Mindfulness com ampla experiência através de anos e 15 controles participaram em uma comparação sobre a espessura do córtex através da utilização de uma ressonância magnética de alta resolução. Os meditadores e controles coincidiam em sexo, idade, raça e anos de educação formal. Detectou-se que os meditadores com ampla experiência tinham uma maior espessura do córtex na ínsula anterior, no córtex sensorial e no córtex pré-frontal. Devido à importância que se dá à observação das sensações internas que têm lugar durante a meditação, o engrossamento dessas regiões é consistente com os informes da prática de Mindfulness (Lazar et al. 2005). Um estudo mais recente confirmava e ampliava os resultados do nosso grupo, indicando uma maior densidade da matéria cinzenta na ínsula anterior direita, além do hipocampo e no giro temporal esquerdo  entre os meditadores de Mindfulness em comparação com os não-meditadores (Holzel et all, 2007)”  (4).
Ainda segundo esses autores, dois estudos chamam a atenção. Um deles examina como o treinamento do MBSR repercutiria nas redes neurais envolvidas na experiência de referência de si mesmo, que se divide em duas formas: autoconsciência momentânea centrada da experiência do momento presente, e uma referência de si mesmo ampliada em termos de características perduráveis, enfoque narrativo em que os sujeitos consideravam seus traços de personalidade. Os dados da pesquisa sugeririam que “um possível mecanismo de ação para a meditação de Mindfulness é a dissociação das duas redes neurais de referência de si mesmo que normalmente estão integradas, e um reforço na rede vinculada à experiência consistente com os objetivos de redução de estresse baseado em Mindfulness” (5).
Um segundo estudo (Creswell, Way, Eisenberg e Lieberman, 2007) apontaria que “Mindfulness pode associar-se a uma melhor regulação pré-frontal das respostas límbicas (ligadas às emoções), e que pode ajudar a explicar em parte porquê Mindfulness é um componente útil da terapia” (6). E Treadway e Lazar, analizando como estudos neurobiológicos recentes de meditação e Mindfulness podem ser úteis para as aplicações clínicas, apontam resumidamente resultados clínicos importantes:
·        Capacidade para experimentar emoções negativas sem ficar necessariamente “enredado” nelas.
·        Fomento do afeto positivo, inclusive nas populações clínicas.
·        Pacientes com depressão e ansiedade mostravam uma atividade maior na eletroencefalografia na metade direita o cérebro quando descansavam tranquilamente, enquanto que os sujeitos sem transtorno psicológico mostravam maior atividade no lado esquerdo, e a correlação nas mudanças observadas com uma melhor função imune.
·        O MBCT com pacientes com risco agudo de suicídio mostra um aumento do estilo afetivo positivo, ajudando-os a manter um padrão emocionalmente estável da atividade cerebral.
·        Menos reatividade fisiológica diante de estímulos desagradáveis, com menos “enredamento” nos pensamentos recorrentes que prolongariam a ativação autonômica.
·        Maior proteção contra a diminuição do córtex cerebral que ocorre normalmente na velhice, constituindo-se numa intervenção potencialmente poderosa contra algumas deteriorações cognitivas devido à idade.
Poderíamos estender os contextos de aplicações e pesquisas sobre os benefícios da prática de Mindfulness (7). Mas vejamos como, na perspectiva da Psicologia budista, o treinamento de Mindfulness se coloca, como se interrelaciona com as atuais práticas de Mindfulness nos contextos clínicos, e quais alertas podem ser feitos, não para desconsiderar esses benefícios, mas para apontar seus eventuais limites e riscos de empobrecimento, em relação aos propósitos maiores sustentados pela Psicologia budista.
Originado do termo budista Sati, Mindfulness passou a abarcar um amplo espectro de ideias e práticas, para seu uso nos procedimentos médico-psicoterapeuticos. Usando a atenção, uma das fortes qualidades da consciência (citta), abre-se a possibilidade de se estar consciente do que ocorre no corpo e na mente momento a momento, e com isso regular a relação com as sensações e sentimentos para uma direção mais equilibrada, ao invés de tentar controlar ou suprimir as emoções e estados mentais difíceis e ameaçadores. Rememorando, através de sati, a mente de estar intencionalmente consciente e atenta, concentrada, com amor ilimitado (metta), aceitação inicial e compaixão (karuna), e a partir dessa base, transformar os padrões não-saudáveis entranhados na mente, que produzem infelicidade, as emoções aflitivas como a raiva, a cobiça, que nos trazem danos e aos outros.
Não julgamento, aceitação e compaixão passam a ser incluídos em Mindfulness, para a diminuição dos transtornos clínicos. Consciência da experiência presente com aceitação (Germer, Siegel, Fulton, 2005), “consciência afetiva”, “presença sincera”, compaixão consciente” (8). Esses autores lembram que a inclusão da aceitação encontra sentido para a maioria dos psicoterapeutas, pois os pacientes vêm em uma situação de muito sofrimento. Acolhendo-os, ajudando-os a observar esses sintomas, aceitá-los com compaixão num primeiro momento, sem autocrítica, julgamento ou culpa, abre-se com a compaixão o espaço para investigar esses sintomas como surgem a cada momento, não se deixando arrastar por essas torrentes sintomáticas, buscando modos hábeis de deixá-los vir e passar, sem se identificar com esses sintomas e pensamentos aflitivos, evitando fugir do momento presente em busca ansiosa por momentos e objetos prazerosos. Ao invés de reatividade desencadeada pelos padrões condicionados de apego e aversão, o que realimentaria esses padrões, o treinamento de Mindfulness permitiria uma resposta mais hábil diante desses sintomas.
            A cultura ocidental passou a incluir no termo Mindfulness um conjunto de práticas não apenas no âmbito do cultivo do amor ilimitado (metta), concentração (samadhi) e introspecção (vipassana), mas também técnicas de visualização, entre outras. Também “meditação” é um termo bastante vago, e inclui práticas muito variadas, o que dificulta o discernimento e avaliação sobre seus princípios e efeitos. “Meditação” é um termo de origem ocidental – o termo budista é bhavana, que significa “desenvolvimento mental”. Assistimos atualmente a difusão da prática de Mindfulness no campo da Educação e no mundo empresarial. No campo da Educação, a descrição de Mindfulness, em Ellen Langer (1989) como “um processo cognitivo que implica abertura, curiosidade e consciência de mais de uma perspectiva” (9); no campo empresarial, as colocações de Richard Boyatzis e Annie McKee (2006) sobre a prática de Mindfulness “para observar a realidade emocional na empresa e evitar enfoques estreitos e a multitarefa constante” (10). O termo “burn out”, como o estresse e desalento de profissionais em empresas, começa a surgir como tema de investigações para o uso da prática de Mindfulness.
            E como a Psicologia budista, em suas raízes originais, veria esse amplo espectro de difusão de Mindfulness? 
Um primeiro aspecto, apontado pelo monge budista Ven. Piyadhammo, refere-se ao formato de treinamento de oito semanas. Historicamente, a formatação de retiros budistas em tempos definidos, como o de dez dias, é algo que foi feito a partir dos finais do séc. XIX – inícios do séc. XX, como uma adaptação, certo enquadramento do treinamento monástico contínuo para viabilizar o acesso aos leigos. O quanto não se cria com isso, na mente dos leigos, a ideia, e os riscos ilusórios, de “treinamento em tempo determinado”, após o qual se tenderia a “recair na mente dispersa” na vida diária?
Um segundo aspecto a destacar seria o da tradução para sati.  Da tradução como “Mindfulness”, a mais frequente nas línguas ibéricas aparece como “plena atenção”. Convém lembrar que há outra palavra em páli para “atenção”: manasikara, que significa “advertência mental, reflexão. É a 1ª. confrontação da mente com um objeto. A atenção prende o objeto aos fatores mentais associados. É, portanto, o fator proeminente em duas classes específicas de consciência: advertência nas cinco portas os sentidos e na porta da mente. Esses estados de consciência formam o 1º. estágio do processo da percepção” (11). A adição do adjetivo “plena” ao termo “atenção” não parece ser suficiente para exprimir a complexidade envolvida no importante termo sati. A atenção comum é uma faculdade básica e universal que está presente em qualquer tipo de estado mental, e “caracteriza os segundos iniciais de simples conhecimento de um objeto, antes que se inicie o reconhecer, identificar, e conceitualizar. Sati pode ser entendido como um posterior desenvolvimento e extensão temporal deste tipo de atenção, pelo acréscimo da clareza e profundidade à usual e muito curta fração de tempo ocupada pela atenção simples no processo perceptivo” (12). A semelhança na função entre sati e atenção se reflete na referência ao termo yoniso manasakira, “atenção sábia”, que funciona como nutrimento para Mindfulness e o claro conhecimento.
Buddhadasa Bhikkhu, renomado monge budista tailandês, define Sati como “a habilidade da mente de conhecer e contemplar a si mesma. Rememoração, conscientização reflexiva, sati é veículo para pañña, sabedoria. Sem sati, a Sabedoria não tem como ser desenvolvida. Sati não é memória, embora as duas sejam relacionadas. Sati nos permite estar conscientes sobre o que estamos experienciando no corpo e na mente, momento a momento, e o que devemos fazer para nos libertar do sofrimento. Sati é caracterizada pela rapidez e agilidade” (13). Assim, “Consciência Atenta” poderia ser uma expressão mais próxima do sentido original de sati.
Sem nos deter em demasia no campo linguístico, devemos nos perguntar: Como usamos Sati? Através do desenvolvimento mental (bhavana) nas Quatro Fundações ou Direcionamentos de Sati, Satipatthana, investigando a vida dos quatro objetos que compõem nossa vida psico-física: o corpo (kaya), as sensações (vedana), os estados mentais (citta) e as atividades-objetos mentais (dhammas).  O Satipatthana Sutta, o Anapanasati Sutta e o MahaSatipatthana Sutta, presentes respectivamente no Majjhima Nikaya 10 e 118 (Sermões de Extensão Média) e Digha Nikaya 22 (Sermões de Extensão Longa), dos ensinamentos do Buddha, são a base do treinamento de Sati.
Importante entendermos que, na perspectiva budista, corpo e mente não são vistos como entidades substantivas, mas como processos condicionados e condicionantes, momento a momento. Fluxos de causas, condições e efeitos. Corpo e mente são agregados processuais: os cinco agregados de corpo, sensação, percepção, formações mentais e consciência, num constante surgir e desaparecer.  a consciência é vista como um processo cognitivo, que se vale de suas qualidades-faculdades para contactar, processar e gerar efeitos, saudáveis ou não-saudáveis. A atenção é uma dessas qualidades, cuja tônica depende da intenção (cetana) presente. Sati, a consciência atenta, é uma das qualidades importantes nesse processo.
E se Sati nos permite estar conscientes sobre o que estamos experienciando no corpo e na mente, momento a momento, e o que devemos fazer para nos libertar do sofrimento, então devemos nos perguntar: de qual sofrimento a Psicologia budista está se referindo? E qual a causa do nosso sofrimento? São duas perguntas-chaves interconectadas, e sua compressão correta é fundamental, pois dela extraímos as soluções efetivas. “Sofrimento” é uma das possíveis traduções para o termo dukkha (em páli). Outros significados seriam “insatisfatoriedade”, “o que é difícil de suportar”. Nascer é sofrimento, envelhecer, adoecer, morrer é sofrimento; não ter o que se quer é sofrimento; ter o que não se quer é sofrimento; não conhecer as verdades que conduzem ao fim do sofrimento é sofrimento. E onde se produz o sofrimento? No corpo e mente, nos cinco agregados de corpo, sensação, percepção, formações mentais e consciência. Os cinco agregados do apego são sofrimento. Se olharmos com profundidade e clareza esta Primeira Nobre Verdade formulada pelo Buddha, veremos que todos os tipos de transtornos mentais e físicos estão incluídos nesta Nobre Verdade. Corpo, sensação, percepção, formações mentais (nelas se incluem os pensamentos, as emoções, a imaginação, a memória) e consciência não são sofrimento em si. São o que são: fenômenos impermanentes.
Então qual a causa do nosso sofrimento? É o apego aos cinco agregados que é sofrimento, apego movido pela cobiça, o ódio e a ignorância. Na Psicologia budista, esta causa é referida como tanhã, a sede ardente pelos objetos sensoriais (kamatanhã), pelo existir (no mundo condicionado e fenomênico, bhavatanhã), e pelo não-existir (o escape do sofrimento da existência, pela auto-aniquilação, abhavatanhã). Cobiça e ódio são duas faces da mesma moeda, o apego e a aversão. Cuja raiz é a ignorância (avijja). Ignorância de quê? Temos uma percepção distorcida sobre a realidade, seja do corpo-mente (“nosso mundo”), seja do mundo externo. Não vemos com clareza as três características deste corpo-mente e de toda a realidade fenomênica existencial: que são impermanentes (anicca), por isso insatisfatórios (dukkha) e carentes de uma substância imutável (anatta).
A ignorância sobre a lei da impermanência nos induz a ver a vida apenas na sua face prazerosa, nos induzindo ao apego, a desejar que o prazeroso permaneça, não vendo sua face inerentemente desprazerosa, nos induzindo à aversão em suas várias formas (irritações, ressentimentos, raivas, ódios, fúrias), desejando que o desprazeroso, o desagradável, não surja. A ignorância sobre a lei de que o que é impermanente (e esta é a natureza de todos os fenômenos físicos e mentais) é por isso insatisfatório (não nos conduz à satisfação-felicidade plena, duradoura) nos induz à delusão do correr atrás dos objetos, mas que por serem impermanentes, estão sempre surgindo e desaparecendo, nos frustrando. A ignorância sobre a verdade da impessoalidade dos fenômenos corpo-mente nos induz à delusão do “eu”, esta pseudo-identidade que criamos e nos apegamos, nos identificando com este corpo-mente, e por isso experienciamos os frutos amargos dessa delusão do “meu corpo sou eu; as sensações são minhas sensações; as percepções são minhas percepções; os pensamentos, emoções, imaginação, memória são meus pensamentos, emoções, imaginação, memória; a consciência é a minha consciência”. Em suma: “isto sou eu, isto é meu, isto é o meu eu”.
Corpo e mente, embora estejam entranhados um no outro, é a mente que conduz o processo. Se movida pela cobiça, o ódio e ignorância, conduz a várias formas de sofrimento (pesar, lamentação, dor, tristeza, frustração, depressão, medo), que reverberam nos danos ao corpo, que por sua vez retroalimenta os danos mentais, num ciclo interminável de causas-efeitos, renascimentos, seja que entendamos renascimento dos cinco agregados momento a momento, ou de uma vida a outra. Isto é o samsara, o incessante turbilhão do vir-a-ser, com todas suas características: nascer, envelhecer, adoecer, morrer. Até quando queremos isto? Esta é a Segunda Nobre Verdade realizada e transmitida pelo Buddha, e que deve ser compreendida.
E se a cobiça (apego), ódio (aversões) e ignorância são, em última instância, as causas dos transtornos mentais e físicos, então abandonando essas causas, superamos o sofrimento, e isto nos conduz a uma vida mais saudável, equilibrada, sábia, e ainda à transcendência desses ciclos, à realização de Nibbana, a Realidade Incondicionada, Plenitude. E se não quisermos considerar essa possibilidade transcendente, ao menos podemos viver esta vida melhor. Esta é a Terceira Nobre Verdade que deve ser vista. E isto não depende de controvérsias sobre religião ou não religião, se o treinamento de Mindfulness deve ser laico ou não-laico, ou se devemos ser budistas ou não-budistas para praticarmos. Estamos no âmbito da pura ciência da mente, verificável empiricamente em nós mesmos, momento a momento. Ehi passiko, venha e veja, dizia o Buddha. Se a prática nos for útil e sustentável aos nossos olhos investigativos, a seguimos. Se não for, deixamo-la de lado.
E se estas são as causas de todos os transtornos físico-mentais, como superá-las? Como um bom médico e terapeuta – e o Buddha é um exemplo disso- vemos a Primeira Nobre Verdade como a sintomática que traz o paciente em busca da cura, a Segunda Nobre Verdade como o diagnóstico, a Terceira Nobre Verdade como a possibilidade da cura pelo diagnóstico correto. Mas e o remédio? A prática do Nobre Óctuplo Caminho, a Quarta Nobre Verdade. O cultivo, treinamento das oito nobres qualidades da mente que contra-agem sobre essas causas e conduzem gradualmente à cura. Oito qualidades organizadas em três grupos: o grupo da Sabedoria (pañña), o grupo da Ética (sila) e o grupo da Concentração (samadhi), do qual Sati, Mindfulness faz parte.
No grupo da Sabedoria, está a compreensão correta (sobre as três características de todos os fenômenos: impermanentes, insatisfatórios e carentes de uma substância, um “eu”, imutável) e o pensamento correto (do não-apego à cobiça sensorial, e cultivo à renúncia-generosidade e compreensão de que nada deste mundo realmente nos pertence; não-animosidade e cultivo da bondade-amizade amorosa; não-crueldade e cultivo da compaixão).
No grupo da Ética, está a fala correta (não-mentira, não-fala que fere, divide, ou inútil), a ação correta (não causar sofrimento aos seres, não tomar o que não nos é dado gratuitamente, vigiar as portas dos sentidos, não se intoxicar com substancias físicas e mentais que anuviem a mente) e o modo de vida correto (basicamente, o sustento da vida através do trabalho que não cause sofrimento a nós e aos outros).
No grupo da Concentração, estão o esforço correto (evitar condições que criem estados mentais não-saudáveis, e se surgirem, abandoná-los; cultivar e fortalecer estados mentais saudáveis), sati-mindfulness correto e a concentração correta (que conduz a estados mais focados e sublimes).
 Já podemos perceber como a prática de Sati-mindfulness se insere, em sua raiz, num campo amplo e profundo de treinamento. Não se trata apenas de cultivar uma atenção contínua, mas a Sati se conecta o importante adjetivo correto, samma sati. Um ladrão tem uma mente muito atenta e concentrada para efetuar o roubo, mas a intenção é não-saudável, incorreta, pois baseada na cobiça, por isso Sati, assim como a concentração, nesse caso, não são saudáveis, corretos. E o que é a prática de Sati-mindfulness correto, hábil, saudável? É o cultivo da consciência atenta, diligente, com visão clara, liberdade, em um campo aberto e amplo de compreensão, livre do desejo e pesar em relação ao mundo (14). Sati-mindfulness é o guardião que vigia e protege a mente da invasão e proliferação de conteúdos do apego, ódio e ignorância. Sati-mindfulness é o fator que deve estar presente junto a todos os outros sete fatores do Nobre Óctuplo Caminho.
É dito no Mahasatipatthana Sutta que a prática Sati-mindfulness correto, hábil, saudável está na contemplação do corpo no corpo, da sensação nas sensações, da consciência na consciência, do Dhamma (as verdades, as leis das coisas como elas são) nos dhammas, os objetos-atividades mentais.
E como praticamos Sati-mindfulness correto nesses quatro objetos (corpo e mente)? De forma ardente, diligente (com energia, esforço correto), com consciência atenta (Sati-mindfulness) e com clara compreensão, sabedoria, sem cobiça e aversão ao corpo e mente, em seu surgir e desaparecer momento a momento, como fenômenos impermanentes, insatisfatórios, carentes de um eu substancial,. Esforço, mindfulness e compreensão corretos são os três fatores cardinais do treinamento do Nobre Óctuplo Caminho, devem estar sempre presentes em nosso treinamento para a reeducação mental. Todos os oito fatores ou qualidades mentais são importantes, mas esses três são cardinais, muito importantes. Os oito fatores são como os aros de uma roda, devem estar equilibradas, se apoiando mutuamente, para fazerem girar a Roda da Vida no sentido da Felicidade, oposta à roda do sofrimento, em suas causas e múltiplas manifestações sintomáticas.
Sati, Mindfulness, nos ensinamentos budistas originais, aparece em três grandes contextos. Como o 7º. Fator-Qualidade mental de treinamento do Nobre Óctuplo Caminho, conforme visto. Como a 3ª. Faculdade das cinco Faculdades Espirituais: Confiança-Fé em nossa possibilidade de desenvolvimento mental-espiritual, Energia, Consciência Atenta (Sati-Mindfulness), Concentração e Sabedoria.  Se imaginarmos uma balança, Mindfulness seria o fiel da balança para equilibrar a relação entre Confiança-Fé/Sabedoria e Energia/ Concentração. Muita Confiança-Fé sem Sabedoria conduz ao fanatismo, cegueira; muita Sabedoria sem Confiança-Fé conduz à arrogância, presunção, frieza intelectualista; muita Energia e pouca Concentração conduz ao sobre-esforço extenuante; muita Concentração e pouca Energia conduz  um estado da mente rígida, como uma estátua de pedra.
E Sati-Mindfulness como o 1º. dos Sete Fatores do Despertar: Sati-Mindfulness, a Investigação (das realidades/leis do corpo-mente), Energia, Êxtase, Tranquilidade, Concentração e Equanimidade.
Usando um foco propício (a respiração, por exemplo, entre outros), treinamos a mente a se manter presente no foco escolhido (e sempre que notamos que ela se distrái - e é Sati que realiza essa importante função -, aceitamos num primeiro momento, relaxamos, não nos criticamos e com gentileza e firmeza trazemos a mente de volta para o foco atencional - e é o Esforço-energia, o 6º. Fator do Nobre Óctuplo Caminho que realiza essa ação -, e com isso geramos gradualmente tranquilização e concentração (samatha), que servirão de base para a mente investigar introspectivamente, à luz das Quatro Nobres Verdades, nossos processos físico-mentais (vipassana), em sua tríplice característica de impermanência, insatisfatoriedade e impessoalidade.
E com qual direção? Removendo a cobiça/desejos não-saudáveis (que nos mantém presos ao sofrimento da existência condicionada) e o pesar/descontentamento pelo mundo (dos agregados corpo-mente). Pela gradual compreensão de que: se cada um dos cinco agregados é impermanente, e por isso insatisfatório, como poderia ser um “eu – meu”? Portanto nossa relação terapêutica com cada um dos cinco agregados é vê-los como: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”. Libertando a mente do apego/aversão aos cinco agregados do apego.
Sabemos que o treinamento de Sati/Mindfulness é longo, e depende das condições e fases em que cada paciente se apresenta. E depende de até qual nível de reeducação mental o paciente se dispõe a empenhar-se. A avaliação cuidadosa e realista do terapeuta-instrutor é fundamental. O cuidado que aqui queremos apontar é no sentido de alertar sobre certos riscos do treinamento de Mindfulness. Ao se desconectar das raízes profundas de suas estruturas originais budistas, ao não incluir a fundamental importância do cultivo de uma Ética, ao não abranger as motivações de abandono da cobiça, ódio e ignorância sobre as causas do sofrimento, ao desconectar a relação de responsabilidade não só do praticante como também dos meios sociais pelas causas do sofrimento, pode se tornar uma panacéia superficial e banalizante, um recurso que, se de um lado, traz certos benefícios mais imediatos e visíveis, por outro lado, pode se reduzir a apenas um amortecedor de sintomas aflitivos, a um reforçador das práticas cobiçosas do mundo contemporâneo, e estancar o processo mais profundo de efetiva superação dos transtornos físico-mentais, tanto ao nível pessoal como social, solapando os nobres propósitos de onde foi retirado (15).
Para evitar essas possíveis consequências a curto, médio e longo prazo, alguns requisitos merecem ser aqui colocados e enfatizados. O próprio terapeuta deveria estudar e compreender as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Óctuplo Caminho. O próprio terapeuta deveria ser um assíduo meditante, em práticas formais, informais e retiros de várias durações, isto independente de se sentir budista ou não. Pode ser conveniente o terapeuta-instrutor abrir gradualmente ao paciente, para opção dele paciente, sobre o amplo contexto original das raízes desse treinamento, e a perspectiva última do treinamento de Mindfulness: o Despertar, a libertação total do sofrimento, do qual os transtornos físicos e mentais, em seus variados graus, são as sintomáticas manifestas de causas mais profundas, e na maioria das vezes ocultas à consciência dos pacientes, e porquê não dizer, da maioria dos seres humanos.


Notas
(1) Pali-english Dictionary. Davids, T. e Stede. W. (Eds.). New Delhi, Índia: Munshiram Manoharlal Publishers Pvt, Ltd, 1921/2001.
(2) Mindfulness based interventions in context: Past, present and future. Kabat-Zinn, J. , Clinical Psychology: Science and Practice, 10(2), 144-156, 2003.
(3) Neurobiología del Mindfulness. Treadway, Michael T., e Lazar, Sara W. , Manual Clínico de Mindfulness, p. 117-138.
(4) Differential engagement of anterior cingulated and adjacent medial frontal cortex in adept meditators and non-meditators. Holzel, B.K, Ott, U., Hempel, H., Hackl, A., Wolf, K., Stark, R., et al. Neuroscience Letters, 421 (1), 16-21, 2007.
 (5) Treadway, Michael T., e Lazar, Sara W. , op.cit., p. 130.
(6) Treadway, Michael T., e Lazar, Sara W. , op.cit., p. 130.
(7) Shaker, Arthur. Mindfulness (Meditação da Consciência Atenta), Neurociências e Saúde. Conhecimento e Prática. Coleção: Visões Rumo ao Dhamma, SP, 2014.
(8) Germer, C., Siegel, R. e Fulton, P. (Eds). Mindfulness and psychotherapy. New York: Guilford Press, 2005.
(9) Langer, E. Mindfulness. Cambridge, MA: Da Capo Press, 1989.
(10) Boyatzis, R. e McKee, A. Liderazgo emocional. Barcelona: Deusto, 2006.
(11) Nyanatiloka, Dicionário Budista, p. 106 , www.casadedharmaorg.org.
(12) Ñanaponika Thera. The Power of Mindfulness, Kandy: BPS, 1986 b (1968), p.2; citado por Analayo, Satipatthana, The Direct Path to Realization, p. 59. Windshore Publications, Cambridge, 2008.
(13) S Buddhadasa Bhikkhu.  Anapanasati, Mindfulness with Breathing, p. 160.
(14) Analayo – Satipatthana,  pgs. 44-66. (150 
(15) Sobre esses riscos, veja também Beyond McMindfulness, em


Referências
Analayo – Satipatthana. The Direct Path to Realization. Windshore Publications, Cambridge, 2008.
Bhikkhu Ñanamoli and Bhikkhu Bodhi - The Middle Length Discourses of the Buddha. A new Translation of the Majjhima Nikaya. Wisdom Publications, USA, 1995.
Boyatzis, R. e McKee, A. - Liderazgo emocional. Barcelona: Deusto, 2006.
Buddhadasa Bhikkhu – Anapanasati.  Mindfulness with Breathing. Dhamma Study-Practice Group Publication, Bangkok, 1988, tradução do Thai por Santikaro Bhikkhu.
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Meditação da Plena Atenção, Neurociências e Saúde

13

Para morrer bem
Arthur Shaker Fauzi Eid


            Todos nós morreremos. Esta é uma lei que ninguém escapa. Sendo inevitável, é mais sábio estarmos atentos e nos preparar para isto.

            A grande maioria dos seres viventes teme a morte. Evitamos pensar e nos colocar de modo realista e maduro diante deste fato; estamos sempre fugindo para distrações que nos façam sentir seguros, confortáveis e felizes. Toda nossa cultura moderna fabrica mecanismos para nos tirar desse confronto: viagens, receitas de saúde, novas descobertas científicas, projetos de terceira idade. Está bem, nada errado em criar interesses que nos mantenham ativos. O problema é quando essas ofertas pretendem, e quase sempre conseguem, nos tirar desse confronto. Mas é um deslocamento apenas superficial. No fundo de nossa mente, sabemos que morreremos, e isto gera tensões, medo, angústia, desespero.

            Muitas vezes criamos ideias ardilosas, nos dizendo: “a vida é cheia de prazeres... é melhor não pensarmos nesse assunto da nossa morte... pensar sobre ela é desprezar a vida... isto só leva a mente à tristeza e à fuga dos desafios de criar novos projetos de vida... na hora de nossa morte pensaremos nisto e pronto”. Observemos como a mente cria pensamentos artimanhosos para nos manter enganados. E não poucas vezes, nossos parentes, amigos e a cultura reforçam nossas ilusões e mecanismos de fuga. Mas lá no nosso íntimo experienciamos o medo, que pode chegar até o terror. Quando nos deparamos com a morte de alguma pessoa querida, por breves momentos sobe à nossa consciência o fato da inevitabilidade do morrer. Mas logo a mente esquece, e volta ao cenário da vida ilusória, a de que não morreremos nunca. Reflitamos: qual o máximo de duração atual da vida humana: oitenta, cem anos?

            A questão da consciência da nossa morte não está apenas em nos dizer que sabemos que morreremos. Todos nós sabemos disso. Mas esse “eu sei disso” são apenas palavras, uma vaga ideia na mente, um superficial senso de aceitação, resignação, postergando de fato tudo para um pseudo futuro longínquo. É apenas um saber teórico e ralo. No fundo, não sabemos de fato quase nada realmente. Negamos, evitamos, tememos, fugimos. É compreensível, a morte assusta. Diante dos fatos e situações que nos ameaçam, temos três opções: enfrentar, fugir ou imobilizar-se. Sendo a morte, e mais especificamente, a nossa morte o fato mais crucial e impactante de nossa vida, tendemos a escolher a fuga ou o imobilismo.

            Como lidarmos com nossa morte de modo realista e maduro? Comecemos refletindo que não desenvolver uma sabedoria e intimidade com nossa própria morte traz dois problemas sérios.

            O primeiro: não ter maturidade mental diante de nossa morte determina um modo de vida na maioria das vezes baseado em ações não-saudáveis, não-éticas: ferimos os seres, tomamos o que não nos pertence, abusamos dos sentidos, nos viciamos em falas impróprias e intoxicantes físicos e mentais. Criamos um modo de vida dirigido pela ilusão de uma felicidade passageira, cuja base é o apego: apego aos prazeres sensuais, apego aos bens materiais, apego às pessoas, apego às sensações agradáveis, conforto, apego às nossas percepções, ideias, apego ao corpo. E, de modo correlato, aversão a tudo que afasta e impede a satisfação de nossos desejos e apegos. Ignoramos que esta individualidade “eu-meu-mim”, com o que nos identificamos – corpo, sensação, percepção, formações mentais e consciência - são agregados impermanentes, fadados a desaparecer. E ignoramos que nossas ações volitivas são karmas que gerarão frutos, mais cedo ou mais tarde. Experienciaremos esses frutos, amargos se as ações que as geraram forem não-saudáveis, baseadas na raiva, ódio, cobiça, crueldade, ignorância, ou venturosos se as ações forem saudáveis, baseadas na amorosidade, compaixão, generosidade, renúncia, sabedoria. Esta frutificação poderá ser nesta vida, ou nas próximas, não sabemos. Karma e renascimento estão imbricados um no outro, em uma mútua interdependência de causalidade-efeito. Morreremos e renasceremos de acordo com o modo como vivemos a cada momento, no corpo, sensação, percepção, pensamento e consciência. Maturar a consciência de nossa morte inevitável determinará desde agora nossas prioridades de conduta corporal, da fala e da mente, que por sua vez determinarão nosso modo de vida atual e no futuro: colhemos e colheremos o que plantamos momento a momento.

            O segundo problema: é uma ilusão pensarmos que daremos conta de nossa mente se deixarmos para pensar em nossa morte apenas quando estivermos próximos da hora da morte. Primeiro, porque não sabemos sobre essa hora. Ela pode ser durante a próxima respiração. Segundo, se estivermos despreparados, é bem provável que o que aconteça é que na proximidade de nossa morte, poderá subir à nossa consciência temores incontroláveis, talvez memórias de ações terríveis que fizemos ou sofremos, e nos veremos incapazes de pacificar a mente. É como pensarmos ilusoriamente que, não tendo nunca treinado tocar violino, daríamos conta de uma performance brilhante se de súbito formos colocados para tocar no palco de uma grande estréia da orquestra sinfônica do Teatro Municipal. Considere também o fato importante de que a qualidade mental do momento de nossa morte tem certa determinação no nosso renascimento. Todas as tradições espirituais afirmam a transcendência e a continuidade após a falência deste corpo que nos mantém neste mundo. A tradição espiritual em que cada um crê e pratica é uma escolha de foro íntimo.

            Assim sendo, é mais sábio começar a treinar aqui e agora, momento a momento, sempre que possível. Plena atenção e discernimento são qualidades mentais de grande valia. Bons amigos espirituais são importantes. Um bom testamento dos bens materiais evita conflitos, disputas e sobretarefas jurídicas e contábeis para os responsáveis. E na base fundamental está a visão correta que norteia a sabedoria, o maestro de nossa prática. Na perspectiva budista, a total libertação da mente das impurezas da cobiça, ódio e delusão, realizando Nibbana, a felicidade duradoura, é a meta suprema. Mas se não conseguirmos nesta vida essa meta plena, podemos alcançar renascimentos melhores, de onde prosseguiremos nossa prática de purificação e libertação da mente, até a realização final. E se não tivermos confiança alguma na verdade do renascimento, ao menos podemos tornar essa vida mais saudável.

            Apresentaremos em seguida um guia prático de meditação conduzida, com vários ângulos e objetos, escolha aqueles que sentir serem mais propícios para a sua personalidade e fase. Você poderá também variar essas escolhas. Ao final desse texto, apresentaremos sugestões de leitura, muitas das quais inspiraram essa prática. Sugerimos que você grave (ou peça para alguém que você goste, que grave) num CD, num tom amistoso, calmo e pausado, essa orientação aqui apresentada na forma de texto escrito. E sentado(a) numa posição ereta e confortável (numa almofada no chão, ou cadeira ou banquinho), respirando natural e calmamente, ouça essa orientação guiada como apoio à sua prática silenciosa, sempre que achar conveniente. Algumas vezes ofereceremos temas para sua reflexão, outras vezes objetos meditativos para sua contemplação direta.


Meditação guiada

            Já se aproxima a hora de minha morte. Pode ser nos próximos momentos, nas próximas horas, nos próximos dias, nos próximos meses. Deixe-me rever quais foram meus atos intencionais ou não intencionais, do corpo, fala e mente, que possam ter causado algum sofrimento para alguma pessoa. Poso procurar essa(s) pessoa(s) e pedir que me perdoe(m) pelo sofrimento que lhe(s) causei? E que ela(s) me diga(m) o que ainda poderei fazer para reparar esse sofrimento? Se não for possível revê-las pessoalmente, então peço em meu íntimo que me perdoe(m), assim como perdôo a todos aqueles que pelos seus atos intencionais ou não intencionais, do corpo, fala e mente, possam ter me causado algum sofrimento.

            Quais prioridades estabelecerei para o tempo que ainda me resta nesta vida? Devo refletir que essas ações intencionais gerarão frutos kármicos talvez ainda nesta vida ou nas próximas. Ações de amorosidade, compaixão, generosidade, renúncia e sabedoria geram frutos saudáveis. Que eu possa colocá-las em prática, mesmo que por um segundo. E sem apego a esses frutos.

            Estados mentais de cobiça, ódio e delusão geram frutos não saudáveis, ainda nesta vida ou nas próximas. Por isso, o Buddha nos ensina a nos perguntar (1): Tenho eu quaisquer qualidades não-saudáveis que eu ainda não tenha abandonado, que poderão se tornar um obstáculo para mim? Como alguém que tivesse sua roupa ou cabelo pegando fogo, colocaria extraordinária vontade, esforço, zelo, entusiasmo, infatigabilidade, plena atenção e clara compreensão para extinguir esse fogo, assim também eu, caso veja que ainda tenha qualidades não-saudáveis, devo colocar extraordinária vontade, esforço, zelo, entusiasmo, infatigabilidade, plena atenção e clara compreensão para abandonar essas qualidades não-saudáveis. E alegrar-me e treinar constantemente nas qualidades saudáveis.

            Reflita: a vida é curta, limitada e efêmera, carregada de sofrimentos e desolação. A vida humana é como uma gota de orvalho numa folha, rapidamente se esvanece ao surgir do sol. É como uma bolha, fugaz. É como uma linha riscada com um graveto na água, instável como uma corrente de água descendo a montanha, uma cuspida, um boi condenado ao matadouro. Ninguém que tenha nascido consegue escapar da morte. Em tempos muito antigos, a duração da vida era muito longa, e ainda assim efêmera, que diria hoje, onde a vida não passa dos cem anos? Curta e incerta é a vida, por isso devo fazer o que é saudável e levar uma vida espiritual.

            Examino com o máximo de imparcialidade: no quê estou apegado? Nos prazeres sensoriais? Em meus bens materiais? Meu carro, computador, apartamento, propriedades, conta bancária? Na minha família, esposa, marido, parceiros, filhos? Parentes, amigos? Carreira profissional? Fama, sucesso? Projetos de futuro? Tudo isto me será tirado. Um dos fortes apegos é para com o corpo. É compreensível. É através do corpo que me sinto vivo neste mundo, é através do corpo que posso experienciar esta vida. Estou cuidando bem do corpo? Mas com que propósito? Para me manter apego à esta vida?

            O que é realmente o corpo? É apenas uma forma material, uma parte da materialidade-base desse mundo. Forma material, sensação, percepção, formações mentais e consciência são agregados impermanentes, por isso destinados a se decomporem, terem um fim. Reflito: tudo que surge, está destinado a desaparecer. Nenhum dos agregados tem uma essência imutável. Do que é feito este corpo, com o qual tanto me identifico e me apego, que temo perder com a morte?

            O corpo é nada mais que um agregado composto dos elementos terra, água, fogo, ar e espaço. O que é o elemento terra do corpo? É o que é sólido, solidificado, transmitindo uma sensação de firmeza, dureza, e que nos apegamos: cabelos, pelos, unhas, dentes, pele, carne, tendões, ossos, medula, rins, coração, fígado, diafragma, baço, pulmões, intestino grosso, intestino delgado, conteúdos do estomago, fezes. Contemple como essas partes sólidas do corpo, que procuram tornar o corpo vivo – e como processos quase sempre independentes de nossa vontade, e inconscientes - são ao mesmo tempo instáveis, como suas mudanças afetam nossas sensações, percepções, pensamentos e consciência, gerando temor, insegurança, sofrimento. E externamente, o elemento terra constitui as plantas, animais, campos, montanhas, o planeta Terra, os planetas, os astros. E vem um tempo em que o elemento água se perturba e com isso o elemento terra externo desaparecerá. O que parecia sólido e imutável se desmancha. Quando mesmo o elemento terra externo, imenso como é, está fadado a ser impermanente, sujeito à destruição, desaparecimento e mudança, o que dizer deste corpo, pequeno, frágil, que dura tão pouco, com o qual me identifico, e ao qual me apego pelo desejo sensual? É apenas o elemento terra, e deve ser visto como realmente é, com uma visão correta: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”. Vendo isto com visão correta, nos tornamos desencantados com o elemento terra e a mente perde a paixão pelo elemento terra que forma o corpo.

            Desenvolva a meditação que é como a terra, que mesmo recebendo sobre ela coisas limpas e sujas, excremento, urina, cuspe, pus e sangue, não se horroriza, não se humilha e nem se ressente, mantendo-se inabalável. Do mesmo modo, tenha uma mente firme, vasta e imparcial como a terra, assim os contatos, sensações e pensamentos agradáveis e desagradáveis não invadirão sua mente e nela não permanecerão.

            O que é o elemento água do corpo? É o que é líquido: bílis, catarro, pus, sangue, suor, gordura, lágrimas, linfa, saliva, muco, gordura das juntas e urina. Contemple como essas partes líquidas fluem pelo corpo, num constante esforço para nutrir, regular, equilibrar as necessidades do corpo, e ao mesmo tempo são instáveis, afetadas por condições internas e externas; como suas mudanças mexem com nossas sensações, percepções, pensamentos e consciência, gerando temor, insegurança, sofrimento. E externamente, todas as formas líquidas: fontes de águas (para abastecer as cidades, e as necessidades humanas de banhar, cozinhar, lavar, limpar, alimentar os animais), e os córregos, rios, lagos, chuvas, umidade, oceanos, processos líquidos também instáveis, ameaçadores, ora com secas, ora com inundações, tsunamis, dilúvios. E vem um tempo em que o elemento externo água se perturba, e arrasa vilas, cidades, países. Vem um tempo em que as águas dos grandes oceanos se afastam léguas e léguas das orlas. Vem um tempo em que as águas dos grandes oceanos secam até serem insuficientes até para molharem a junta de um dedo. Quando mesmo o elemento água externo, imenso como é, está fadado a ser impermanente, sujeito à destruição, desaparecimento e mudança, o que dizer deste corpo, pequeno, frágil, que dura tão pouco, com o qual me identifico, e ao qual me apego pelo desejo sensual? É apenas o elemento água, e deve ser visto como realmente é, com uma visão correta: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”. Vendo isto com visão correta, nos tornamos desencantados com o elemento água e a mente perde a paixão pelo elemento água que forma o corpo.

            Desenvolva a meditação que é como a água, que contorna os obstáculos e prossegue, e que mesmo sendo nela lavadas coisas limpas e sujas, e recebendo excremento, urina, cuspe, pus e sangue, não se horroriza, não se humilha e nem se ressente, mantendo-se pura, tolerante e imparcial. Do mesmo modo, tenha uma mente maleável, flexível, adaptável e imparcial como a água, assim os contatos, sensações e pensamentos agradáveis e desagradáveis não invadirão sua mente e nela não permanecerão.

            O que é o elemento fogo do corpo? É o que é temperatura, através do que há o aquecimento, o envelhecimento, o consumir, a digestão do que é comido, bebido, degustado, a temperatura do corpo, a febre, as combustões do oxigênio pelas células. Contemple o esforço constante do corpo para regular a temperatura interna, dos processos digestivos, do equilíbrio entre a temperatura interna e externa, a pequena faixa de cerca de 2º C de tolerância interna da temperatura do corpo, entre 37º e 39º C; abaixo de 36º C sentimos frio, acima de 38º C sentimos febre, ameaçadora, no limite dos 40º C. Contemplemos os esforços às vezes inviáveis para a adaptação humana às regiões geladas ou extremamente quentes desérticas. Contemple esse constante esforço de equilíbrio térmico, instável, afetado por condições internas e externas; como essas variações térmicas afetam nossas sensações, percepções, pensamentos e consciência, gerando temor, insegurança, sofrimento. E externamente, o sol, todas as potências calóricas, o fogo da queima de todos os tipos de combustíveis necessários para mover máquinas, gerar calor para os sistemas de aquecimento no inverno, processos instáveis e ameaçadores. E vem um tempo em que o elemento externo fogo se perturba, e incendeia florestas, vilas, cidades, países. Ou desaparece pela falta de combustível, e se tenta fazer fogo até com penas de pássaros. Quando mesmo o elemento fogo externo, imenso como é, está fadado a ser impermanente, sujeito à destruição, desaparecimento e mudança, o que dizer deste corpo, pequeno, frágil, que dura tão pouco, com o qual me identifico, e ao qual me apego pelo desejo sensual? É apenas o elemento fogo, e deve ser visto como realmente é, com uma visão correta: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”. Vendo isto com visão correta, nos tornamos desencantados com o elemento fogo e a mente perde a paixão pelo elemento fogo que forma o corpo.

            Desenvolva a meditação que é como o fogo, no qual são queimadas coisas limpas e sujas, e recebendo excremento, urina, cuspe, pus e sangue, não se horroriza, não se humilha e nem se ressente, mantendo-se puro e imparcial. Do mesmo modo, tenha uma mente ardente, energética que queima as impurezas e impulsiona os esforços rumo à libertação. Assim os contatos, sensações e pensamentos agradáveis e desagradáveis não invadirão sua mente e nela não permanecerão.

            O que é o elemento ar do corpo? É tudo que é aéreo, os ventos que sobem e descem pelo corpo, ventos no estomago, nos intestinos, gases, ventos que fluem pelos membros, a inspiração, a expiração. Contemple esses esforços incessantes do corpo para equilibrar os ventos internos, que movimentam os nutrientes sólidos, líquidos, gasosos por dentro do corpo, e como esses ventos internos são instáveis, gerando temor, insegurança, sofrimento. E externamente, os ventos ora amenos, ora violentos. E vem um tempo em que o elemento externo ar se perturba, e com suas tormentas e furacões arrasa vilas, cidades, países. E vem um tempo em que a falta de ar é tanta que nenhum ventilador refresca. Quando mesmo o elemento ar externo, imenso como é, está fadado a ser impermanente, sujeito à destruição, desaparecimento e mudança, o que dizer deste corpo, pequeno, frágil, que dura tão pouco, com o qual me identifico, e ao qual me apego pelo desejo sensual? É apenas o elemento ar, e deve ser visto como realmente é, com uma visão correta: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”. Vendo isto com visão correta, nos tornamos desencantados com o elemento ar e a mente perde a paixão pelo elemento ar que forma o corpo.

            Desenvolva a meditação que é como o ar, que sopra sobre coisas limpas e sujas, excremento, urina, cuspe, pus e sangue, e não se horroriza, não se humilha e nem se ressente, mantendo-se puro e imparcial. Do mesmo modo, tenha uma mente arejada, fluida, que sopra e limpa as impurezas. Assim os contatos, sensações e pensamentos agradáveis e desagradáveis não invadirão sua mente e nela não permanecerão.

            O que é o elemento espaço do corpo? Internamente, são os buracos dos ouvidos, narinas, a entrada da boca, pela qual os alimentos são ingeridos, e os buracos de saída por onde são excretados. E externamente, o espaço, aberto, dentro do qual as formas materiais se distribuem, se movimentam, onde os corpos se limitam, gerando o senso de separatividade, de distinções ameaçadoras, as disputas pela posse dos recursos de sobrevivência das individualidades, das espécies, o senso de pertencimento a grupos, raças, identidades delusórias e propícias às guerras, conflitos, violências. E também o espaço alusivo da abertura para a transcendência, a superação da limitação opressiva, da prisão sufocante da forma material corpo, a vida da mente liberta, vasta, os reinos celestes imateriais e, acima de todos os reinos condicionados, reina Nibbana, a plenitude da felicidade duradoura, imortal. E vem um tempo em que o elemento externo espaço se perturba, e o mundo se contrái e se fecha. Quando mesmo o elemento externo espaço, imenso como é, está fadado a ser impermanente, sujeito à destruição, desaparecimento e mudança, o que dizer deste corpo, pequeno, frágil, que dura tão pouco, com o qual me identifico, e ao qual me apego pelo desejo sensual? É apenas o elemento espaço, e deve ser visto como realmente é, com uma visão correta: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”. Vendo isto com visão correta, nos tornamos desencantados com o elemento espaço e a mente perde a paixão pelo elemento espaço que forma o corpo.

            Desenvolva a meditação que é como o espaço, que não está estabelecido em lugar nenhum. Do mesmo modo, tenha uma mente aberta, vasta e imparcial como o espaço, onde nada se adere. Assim os contatos, sensações e pensamentos agradáveis e desagradáveis não invadirão sua mente e nela não permanecerão.

            Com a mente preenchida de compaixão, amorosidade e tolerância, perceba a chegada dos últimos momentos da sua vida neste mundo. Talvez seja possível morrer em casa, rodeado de pessoas amigas. Peça que não haja choros, lamentações, feições de desespero e temor. Embora sejam manifestações humanas naturais e compreensivas diante da eminência da perda de alguém que está partindo, dificultam a passagem. Diga a elas que paz e amorosidade serena, na medida do possível, são mais propícias. Recomenda-se que se suspenda alimentos, a fim de evitar esforços digestivos ao corpo e manter a mente lúcida. Seria propício, se possível, estar o mais consciente possível. Esta é uma decisão delicada, que depende de condicionantes médicos, ponderações familiares e opção individual.

            Mantenha-se calmo e atento. Abra mão, abandone, deixe para trás o apego a bens materiais, a pessoas, a lembranças do passado, nada disso mais importa. Vá fechando as portas dos sentidos que dão para o mundo de fora. Traga a atenção da mente para dentro, para o íntimo de seu coração. Fique atento e tranquilo. Sensações corporais desagradáveis, dores e incômodos podem estar emergindo. A respiração se torna curta, talvez você sinta certo sufoco, falta de ar, diminuição do batimento cardíaco, tremores. A energia vital está se esvaindo. Mantenha o corpo relaxado, a mente atenta, evitando na medida do possível reatividades aversivas. Abandone qualquer identificação com este corpo, ele não é nada mais que um agregado dos elementos terra, água, fogo, ar e espaço, seguindo seu processo natural de desagregação. Traga para a mente a clara compreensão e discernimento: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”. Formações mentais de medo, insegurança pavor, memórias passadas podem emergir, algumas terríveis. Aceite, não alimente, não se identifique com elas. Relembre-se: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”. Este mundo condicionado corporal e mental não é meu verdadeiro lar. A mente luminosa, pura, liberta e infinita é a felicidade duradoura, imortal. Mantenha-se com o máximo de atenção, tranquilidade e equanimidade. Contemple cada segundo da percepção do corpo e das formações mentais com clara compreensão e abertura sábia: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”.

            Aproxima-se o momento final. Único. O grande salto.






Notas e sugestões de leitura

(1) Os comentários e orientações da meditação guiada são compilações advindas de palestras de monges e dos seguintes suttas budistas:
- Meditação sobre a morte. Anguttara Nikaya AN 6.19-20; 8.73-74.
- Maharahulovada Sutta – O Grande Sermão do Conselho (do Buddha) para (seu filho e monge) Rahula, Majjhima Nikaya MN 62.
- Mahahatthipadopama Sutta - O Grande Sermão do Símile da Pegada do Elefante (ensinado pelo Venerável Sariputta, um dos principais monges assessores do Buddha), Majjhima Nikaya MN 28, www.acessoaoinsight.net
- Araka. Anguttara Nikaya AN 7.74.,
- Meditação sobre a morte. Anguttara Nikaya AN; 8.73-74, em The Numerical DIscourses of the Buddha – A Translation of the Anguttara Nikaya- by Bhikkhu Bodhi, pgs. 1096-1098; 1219-1223. .Boston, Wisdom, 2012.

Veja também:

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_________________________A Plena Atenção à Morte. São Paulo: Edições Casa de Dharma, 2013.
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___________________ Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
___________________ A Morte: um Amanhecer. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
Phra Ajaan Chah. Nosso Verdadeiro Lar. www.acessoaoinsight.net
Pierre, Clarice. A Arte de Viver e Morrer. Cotia: Ateliê Editorial, 1999.
Sogyal Rinpoche. O Livro Tibetano do Viver e do Morrer. São Paulo: Talento: Palas Athena, 1999.
  


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 Meditação da Plena Atenção, Neurociências e Saúde

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Cérebro, Mente e Neuroimagens: funcionalidade e limites

Arthur Shaker Fauzi Eid


O diálogo entre as Neurociências e o método e prática da Meditação da Plena Atenção tem se beneficiado pelo avanço das técnicas eletromecânicas de registros das atividades do cérebro.

O estudo das oscilações elétricas do cérebro trouxe o electroencefalograma (as ondas alfa, beta, gama, delta); a microestimulação elétrica do cérebro possibilitou identificar correlações entre áreas e funções cerebrais e a relevância do córtex cerebral e da formação reticular do mesencéfalo nos processos mentais humanos. Técnicas de visualização buscaram apreender a relação entre as atividades cerebrais e o seu metabolismo, através da medição do consumo de oxigênio e glicose pelos neurônios em vários processos de atividade cerebral, como no repouso ou em cálculos mentais complexos. O surgimento da tomografia por emissão de pósitrons, que iria permitir perceber concentrações de glicose radioativa em áreas mais ativas do cérebro, e posteriormente a técnica das imagens funcionais por ressonância magnética, abriu dados para novas percepções sobre certas relações entre áreas cerebrais e funções cognitivas.

Inúmeras pesquisas científicas têm surgido a partir do uso dessas técnicas de registro, procurando investigar como cérebro funciona, e se transforma, quando sob a atividade meditativa. A compreensão dos padrões de funcionamento e transformação do cérebro pode trazer benefícios para o conhecimento científico e para o lide com doenças como o mal de Alzheimer, câncer, síndrome de pânico, Transtorno Obsessivo Compulsivo, ansiedade, estresse, depressão, fibromialgia, entre outras. Pacientes, monges e praticantes têm tido seus cérebros escaneados, plugados, e esses registros interpretados sob vários ângulos. Se por um lado esses registros dariam base para proposições científicas sobre o funcionamento do cérebro, por outro lado colocam questões: qual o grau de confiabilidade nesses registros? Com quais fundamentos e métodos lemos esses registros? Quais os limites e riscos de interpretação que esses registros colocam?

Tomo como ponto de partida as observações de David Dobbs (Mente e Cérebro, no.19, p.65-71) sobre a precisão e a utilidade dos resultados da ressonância magnética funcional (fMRI), questionando a suposta equivalência entre mente e cérebro.

O debate envolve aspectos técnicos e filosóficos, e se refere, por um lado, à precisão do fMRI (pois mede indiretamente a atividade neuronal, pelo aumento no fluxo sanguíneo vinculado à atividade); por outro, sobre a pertinência em correlacionar funções mentais complexas à regiões do cérebro.

Um primeiro ponto do debate diz respeito à leitura sobre a resposta hemodinâmica (fluxo sanguíneo):

“Para começar, a ação neuronal leva milionésimos de segundos, enquanto o afluxo de sangue continua por dois a seis segundos; o aumento detectado no fluxo sanguíneo, portanto, pode estar ‘alimentando’ mais de uma operação”.

“Além disso, uma vez que cada voxel (termo que une ‘volume’ e ‘pixel’) encerra milhares de neurônios, pode ser necessário a ativação de milhares ou mesmo milhões deles para acender uma região; é como se a seção inteira de um estádio tivesse de gritar para ser ouvida”.

“Ao mesmo tempo, é possível que em alguns casos um pequeno grupo de neurônios puxando pouco sangue, ou um circuito fino de neurônios conectado a regiões mais amplas, possam executar funções tão cruciais quanto um grupo maior em outro lugar, mas tanto passar desapercebidos quanto aparecer como uma atividade menor. Do mesmo, alguns neurônios talvez funcionem de maneira mais eficiente que outros, consumindo menos sangue. Todos esses fatores podem significar que uma imagem de fMRI representa erroneamente a neurodinamica real.

Processar os gigabytes de dados brutos do scan para que se tornem imagens requer outros cuidados. Os pesquisadores devem selecionar e ajustar os diversos algoritmos para extrair uma imagem precisa, compensando no meio do caminho as variações na configuração do crânio e do cérebro, o movimento dos pacientes dentro do aparelho, ruído na informação e assim por diante. Essa ‘cadeia de interferências’, chamada assim em artigo recente da Nature Neuroscience, oferece muita oportunidade para erro.

Por fim, a maior parte dos estudos com fMRI utiliza um processamento univariável que modifica a natureza distributiva da neurodinâmica, segundo aqueles que questionam a técnica. As críticas aumentam porque os algoritmos univariáveis (literalmente ‘uma variável’) consideram os dados que entram de cada voxel durante um scan como uma soma, tornando impossível saber como a atividade em um voxel particular ocorreu (de uma vez só, por exemplo, ou em vários pulsos) ou como se relacionou sequencialmente com a atividade em outros voxels. O processamento univariado vê todas as partes funcionando – portanto, as múltiplas áreas ressaltadas na maioria das imagens-, mas não de modo a mostrar como um a região segue ou responde a outra. Essa situação faz da observação de uma imagem de fMRI algo como ouvir um quarteto de cordas, escutando (condensado em único som depois da música ter terminado) apenas a quantidade total de som produzido por cada instrumento durante a execução, em vez de escutar como os músicos tocam juntos e respondem uns aos outros. Métodos estatísticos conhecidos como análise multivariada podem separar a atividade de cada voxel e analisar os intercâmbios entre as regiões do cérebro, mas a complexidade de tais análises até agora limitou seu uso” (p.67-68).

Prosseguindo:

“Alguns críticos (incluindo Faux (Steven Faux, chefe do Depto. de Psicologia da Universidade Drake), e o psicólogo William R. Hurt, professor emérito da Universidade de Michigan em Ann Harbor, argumentam que muitas das funções cognitivas estudadas com o trabalho de fMRI são tão abstratas e vagas que descrevem pouco mais que um sistema nervoso conceitual. No topo da lista de dúvidas de Faux está a chamada função executiva do cérebro. ‘Esse é um dos procedimentos favoritos’, diz ele, ‘medir o executivo central’. Mas o que é isso?’

Muitos psiquiatras e neurologistas concordam que a função executiva seja a faculdade real, e a produção de imagens e os estudos físicos indicam que ela provém de um circuito no córtex pré-frontal e no córtex cingulado anterior (uma área pequena entre os dois lobos frontais). A função executiva organiza os pensamentos e dá às pessoas a habilidade de planejar e levar a termo suas resoluções. Mas especialistas em cérebro têm suspeitas sobre a alta frequência com que a função executiva é citada nos testes com fMRI, as regiões envolvidas ‘acendem’ constantemente. Diversos pesquisadores poderão concluir com muita rapidez que a função executiva é, portanto, responsável, quando na verdade as regiões podem estar acendendo simplesmente porque a função executiva está na base de tantas atividades cerebrais que pode muito bem permanecer ‘ligada’ ”(p.69).

Não desconsiderando a utilidade do fMRI, coloca-se a necessidade da cautela na leitura desses dados, pois envolve a controvérsia sobre questões conceituais e tangíveis:

“Essa dualidade é inerente às tentativas dos cientistas de conectar a mente, efêmera, ao cérebro corpóreo. Uma preocupação básica é de que a fMRI seja um novo capítulo da velha tentativa de relacionar processos mentais específicos a regiões particulares do cérebro.

Poucos pesquisadores acreditam seriamente que as funções do cérebro sejam tão compartimentadas. Como diz Raichel (Marcus E. Raichle, neurologista da Universidade de Washington): ‘Nenhuma pessoa racional sugeriria que há um único lugar da ‘emoção’ por exemplo. Mesmo assim, a maioria dos estudos de fMRI colocou seu foco em como determinado processo mental ativa certas áreas. Isso provocou a acusação mordaz de que os estudos com fMRI constituem uma nova ‘frenologia’, uma versão moderna da prática do século XIX de interpretar a estrutura do crânio de uma pessoa como um mapa da inteligência e do caráter dele ou dela” (p.70).Ou, como cientistas alertam sobre os limites do eletroencefalograma, este “revela pouco sobre a intrincadíssima atividade do encéfalo. Segundo eles, seria como se tentássemos analisar todos os lances de uma partida de futebol apenas ouvindo as reações da torcida presente no estádio”. (Amabis & Martho, p. 472)

Dobbs conclui pela esperança positiva de que o avanço da tecnologia do fMRI atual, protocolos de processamento mais padronizado e revisão de pares, e melhora dos algoritmos multivariados (para revelação de interações entre as regiões do cérebro) reduzam os equívocos metodológicos, permitindo que algum dia o fMRI possa mostrar a verdadeira natureza do cérebro, qual uma orquestra, “com diferentes seções.tocando em diversos momentos, volumes e timbres, dependendo do efeito necessário, interagindo em combinações infindáveis para criar uma variedade infinita de música” (p.71).

Reencontramos novamente o problema de identificação dos CNC, a relação mente-cérebro. Numa outra linha de análise crítica, Jane O’Grady toma como ponto de partida analítico um artigo publicado na revista Times (fev. 2009): “Can a machine change your mind?” (Uma máquina pode mudar sua mente?”) Uma quantidade enorme de artigos tem surgido com a proposição de que seria “apenas uma questão de tempo” para a superação da lacuna entre o conteúdo físico do cérebro e a consciência, que se tornará apenas uma questão científica, e não mais filosófica. Já na década de 50 do século passado, filósofos como JJC Smart advogavam que em breve estados específicos da consciência poderiam ser traduzidos como idênticos a estados cerebrais.

Esta perspectiva do reducionismo científico (que Ramachandram considera um “recurso necessário” de investigação científica) não deixa fora algo importante? Wittgenstein imaginou um cenário onde cientistas abrem o cérebro de alguém, enquanto eles e esta pessoa ao mesmo tempo observam os registros neurológicos (disparos dos neurônios, sinapses, etc.). Mas essa pessoa, diferente dos cientistas, está observando (ou experienciando) duas coisas, ao invés de uma: pode observar que quando ele sente ou pensa sobre algo, certas atividades cerebrais ocorrem. Ela experiencia ou pensa de certos modos e experiencia o observar do seu cérebro de certo modo. Os cientistas experienciam apenas o cérebro funcionando. E que se esta pessoa observasse no futuro esse vídeo gravado, ela estaria na mesma situação atual dos cientistas (salvo se ela tivesse memória perfeita ou se a experiência fosse muito breve): ela teria de deduzir o que ela estaria pensando sobre, ou sentindo naquela ocasião.

Quando identificamos a mente com o cérebro, os estados mentais como estados cerebrais, e conferimos a este cérebro um estatuto de objeto material, terminamos por considerar que não faria diferença qual cérebro está sendo observado, e por quem, mas isto faz toda a diferença. E “ler” o cérebro implica que o observador tem de “deduzir” o que está ocorrendo mentalmente na mente do observado, e essa atividade de “dedução” cognitiva é bastante problemática, pois depende das condições de conhecimento do observador. Este teria de inferir correlações cérebro/estado mental, se apoiando nos relatos do possuidor do cérebro, e em induções de cérebros em contextos similares, etc. É certo que sem os processos cerebrais a consciência não ocorreria, mas o que seja a consciência e seus conteúdos, é apenas aquilo que está no cérebro, pergunta a autora?

Talvez as Neurociências possam no limite obter correlações ou causações, mas não identidade entre processos cerebrais e estados mentais. E, segundo a autora, correlações são mais factíveis para os estados mentais relacionados ao corpo, mas quando se trata dos conteúdos intencionais dos estados mentais, as inferências se complicam, pois envolvem dimensões sutis do universo mental da pessoa. É perfeitamente aceitável que cientificamente água é H2O, relâmpago é uma descarga elétrica, calor é movimento molecular, independente do ponto de vista de determinado observador, mas “não podemos subtrair o sujeito quando lidamos com a consciência. Consciência é inevitavelmente subjetivo, e também sobre como coisas parecem ser para a consciência da pessoa” (p.6). Certo que há correlações com propriedades cerebrais, “mas o que a pessoa experiência vai além dessas propriedades cerebrais. Uma descrição científica do quê acontece no cérebro quando alguém tem certo pensamento ou experiência parece deixar de lado inevitavelmente do que se trata o pensamento ou a experiência. Mais uma vez, algo é deixado fora, algo que, se a pessoa estivesse observando seus próprios estados cerebrais, iria além de disparos neurais e movimentos sinápticos”. E, segundo autora, o que é mais preocupante sobre os proponentes de uma ciência que pretende reduzir o mental ao neural, e o ser humano a um objeto meramente físico, é que “força a consciência a ser apenas uma equivalência com disparos eletro-químicos cerebrais, e que o que as pessoas leigas entendem sobre suas sensações, memórias e crenças seriam apenas uma ‘psicologia ignorante e ultrapassada’, a ser abandonada e substituída por uma ‘nomenclatura científica correta’ ”.

Concluindo, segundo a autora, “as novas ciências neuro-sociais são a mais recente das muitas tentativas de naturalizar o homem, de tornar todos os aspectos de nossas vidas compreensíveis meramente como objetos de explanação científica”, confinando a um mundo de átomos, perdendo-se a qualidade fundamental das significações. E “nosso mundo seria progressivamente esvaziado de significado, moralidade, dignidade e liberdade, e se rejeitarmos nossa ‘psicologia ignorante’ em favor de uma terminologia científica sobre estados cerebrais, não apenas conheceríamos menos (e não mais) sobre nós mesmos; teríamos menos sobre o quê saber, porque seríamos menos” (p.8).

O cerne da questão está em não perdermos a primazia da experiência em primeira pessoa. Talvez se possa, e se deva, buscar conjugar (e não opor) as observações e contribuições trazidas pelas pesquisas das Neurociências, com as significações (e relatos) vindos das experiências da própria pessoa. Claro que esses relatos tendem a ser nublados pelos níveis de distorção com que a pessoas “vê” sua própria experiência de estados mentais. Essa distorção perceptiva é a raiz do sofrimento humano, segundo os ensinamentos do Buddha. Relatos mentais trazidos por meditantes experientes podem qualificar melhor esses relatos, e é isso que tem norteado algumas pesquisas das Neurociências, comparando relatos e evidências de meditantes e não-meditantes. Se é plausível a colocação de Ramachandram de que relatos científicos e experiências da própria pessoa são duas linguagens de tradução de um fenômeno, e que pode ser benéfico trabalhar com as duas, ressalva seja feita de que a experiência da mente vivida pela própria pessoa é algo incomensuravelmente mais profundo e denso de significações do que os registros mecânicos do cérebro. Isso porque, em última instância, apenas a mente pode conhecer a mente. E esse é o propósito do treinamento da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness), e de todo o ensinamento do Buddha. Mente é cognição, e conhecendo nossa própria mente pela contemplação direta dos agregados do corpo, sensações, percepção, formações mentais e consciência momento a momento, aprendemos a liberar a mente das raízes não-saudáveis da cobiça, ódio e delusão. Purificando a mente dessas tendências condicionadas, experienciamos progressivamente níveis mais profundos de felicidade, bem estar e saúde, rumo a Nibbana, a mente pura e iluminada.

Atentos aos limites e perigos, acompanhando a evolução das pesquisas neurocientíficas, podemos conjugar os benefícios das Neurociências e da Meditação da Plena Atenção, na construção do caminho de Saúde Integral. Não conseguiremos, devido à lei da impermanência, evitar a decadência do corpo e a morte, mas aprendemos a habilidade de atravessar esta vida com sabedoria e a harmonia possível, tendo como guia a Estrela-Norte de Nibbana.

Referências
Amabis, José M., Martho, Gilberto R. Biologia dos organismos 2. SP: Editora Moderna, 1998.
Dobbs, David. Limites da imagem. Desvendando o cérebro. Mente e Cérebro, edição especial, no. 19, pags. 65-71. SP: Duetto Editorial.
Logothetis, Nikos K. e Wandell, Brian A. Interpreting the BOLD signal, em Annual Review of Physiology, vol. 66, pags 735- 769, março de 2004.
Mayhew, John E. W. A measured look at neuronal oxygen consumption. Em Science, vol 229, pags. 1023-1024, 14 fevereiro de 2003.

Uttal, William R. The new phrenology. MIT Press, 2003.



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 Meditação da Plena Atenção, Neurociências e Saúde

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A Consciência e o Eu

Arthur Shaker Fauzi Eid


Quando as emoções e estados mentais aflitivos constrangem nosso coração e mente com certo grau de sofrimento, nos sentimos compelidos a buscar superá-los, e a meditação surge como uma via útil.

Durante muitas fases de nossa prática da plena atenção, nos sentimos motivados por esse senso de “eu estou meditando, eu estou conseguindo diminuir o sofrimento através de um manejo mais saudável do meu corpo, das minhas sensações das minhas emoções, e dos meus pensamentos”. Ganhamos mais confiança e habilidade para percebermos e intervirmos em nosso corpo, sensações, percepções, emoções e pensamentos, em um caminho de saúde mais equilibrado. Então nos deparamos com um dos grandes e inesperados obstáculos, quando somos convidados a contemplar nossa consciência: quem sou eu? Sou este sujeito-consciência que contempla os objetos corpo-sensação-percepção-pensamento?

Agregado da consciência é o mais difícil de lidar não só porque muda muito rapidamente, criando essa sensação (ilusória) de continuidade e permanência, mas principalmente porque é pela atividade da consciência que criamos esse senso de um “eu-sujeito”. Criamos um senso de identidade “eu mesmo permanente” colado na consciência. Mas se esta consciência está sempre surgindo e desaparecendo, impermanente, qual desses “eus” sou “eu”? O “eu” quando “eu tinha 5 anos? Vinte anos? Hoje?” E mesmo quando aceitamos que em nosso percurso de vida, estamos mudando desde que nascemos, ainda assim acreditamos que são mudanças de conteúdos dentro de uma mesma substância fixa, do “meu eu” que tem nome e personalidade com os quais nos identificamos como sendo “eu mesmo”, “minha alma”, “meu espírito”. Somos capazes de aceitar que nossa casa feita de corpo, sensações, percepções e formações mentais está precisando de reformas e limpezas, mas nos identificamos com o senso de “eu-casa”. Temos medo de perder o apoio e a segurança de um “eu-chão”. Pressionados pelo sofrimento e percepção da fragilidade e fugacidade da vida, buscamos alternativas espirituais para conseguir um “eu espiritualizado”, um “eu evoluído”, largar o “pequeno eu” e desenvolver o “grande Eu”.

Um dos importantes diferenciais, senão o maior, dos ensinamentos do Buddha é a realização da natureza ilusória de um suposto “eu-ego” como entidade permanente. O “eu-ego” é uma construção ilusória da mente. É preciso que investiguemos essa ilusão, vermos que os fenômenos mentais são impessoais, “não-eu”, anatta. Há consciência, mas nenhum sujeito por detrás da consciência. Apenas processos corporais e mentais, em constante fluxo de mudanças. É isto que progressivamente a treinamento da Meditação da Plena Atenção quer nos convidar a investigar por nós mesmos. Pelo insight, vermos que a raiz mais profunda de todo nosso sofrimento é o apego a esse senso de “eu-ego”. Mas o quê as Neurociências têm a dizer sobre esse senso de individualidade? Teria uma base no cérebro?

Tomaremos como ponto de partida as instigantes proposições de Ramachandram, renomado neurocientista e pesquisador. Suas observações são desafiadoras, por isso usarei de citações relativamente longas, de seu livro “Fantasmas do Cérebro”, de modo a tentar ser o mais fiel à sua linha de argumentação. Pedimos ao leitor certa paciência para acompanhar esse percurso às vezes exigente em demasia. No cap. 12, que considero o mais pertinente ao nosso tema, o autor assim inicia:

“Na primeira metade do século XXI, a ciência enfrentará seu maior desafio tentando responder a uma pergunta impregnada de misticismo e metafísica durante milênios: Qual é a natureza do eu, da individualidade? Como alguém que nasceu na Índia e se criou na tradição hindu, ensinaram-me que o conceito de indivíduo – o “eu” dentro de mim que é separado do universo e se empenha numa altaneira inspeção do mundo em torno de mim – é uma ilusão, um véu chamado maya. A busca de esclarecimento, diziam-me, consiste em levantar esse véu e perceber que você é realmente “Um com o cosmos”. Ironicamente, após extenso aprendizado em medicina ocidental e mais de 15 anos de pesquisas sobre pacientes neurológicos e ilusões visuais, cheguei ao entendimento de que há muita verdade nisso - que a idéia de uma única individualidade unificada “que habita” o cérebro pode ser de fato uma ilusão” (Ramachandram, 2004, p.287)



Prosseguindo:

“Tudo que tenho aprendido no estudo intensivo de pessoas normais e pacientes que tiveram lesões em várias partes de seus cérebros aponta para uma ideia empolgante: que você cria sua própria “realidade” a partir de fragmentos de informações, que o que você “vê” é uma representação confiável – mas nem sempre acurada – do que existe no mundo, que você é completamente inconsciente da grande maioria dos fatos que se desenrolam em seu cérebro. Na verdade, a maior parte de suas ações é realizada por uma hoste de zumbis inconscientes que existem em pacífica harmonia com você (a “pessoa”) dentro do seu corpo!” (Ramachandram, 2004, p.288)

Ramachandam interpreta as atividades cerebrais como feitos por zumbis (no sentido de serem inconscientes). Não vejo porque personalizar funções fisiológicas. Na perspectiva budista, não encontramos a noção de “inconsciente”: a mente impessoal rege o corpo em todos os seus níveis, ainda que não percebamos isto com clareza, devido à ignorância e baixa concentração.

Prosseguindo:

“Contudo, muitas pessoas acham inquietante que toda a riqueza de nossa vida mental – todos os nossos pensamentos, sentimentos, emoções, até mesmo o que consideramos nossos eus íntimos – nasça inteiramente da atividade de pequenos feixes de protoplasma no cérebro. Como é possível isto? Como poderia algo tão profundamente misterioso como a consciência surgir de um naco de carne dentro do crânio? O problema de mente e matéria, substância e espírito, ilusão e realidade, tem sido uma grande preocupação da filosofia oriental e ocidental há milênios, mas pouca coisa de valor duradouro tem surgido. (…) Não vou fingir ter resolvido estes mistérios, mas penso realmente que há uma nova forma de estudar a consciência, tratando-a não como uma questão filosófica, lógica ou conceitual, mas como um problema empírico”. (Ramachandram, 2004, p.288)

Reencontramos aqui a suposição recorrente da consciência como apenas uma emanação cerebral, um epifenômeno gerado por um fluxo de íons e correntes elétricas da rede neural, concepção que já analizamos em capítulos anteriores. De qualquer modo, como o autor pretende tratar a consciência como problema empírico?

Em primeiro lugar, sugerindo que “a consciência nasce não do cérebro inteiro, mas de certos circuitos cerebrais especializados que realizam um estilo particular de computação. Para ilustrar a natureza desses circuitos e as computações especiais que realizam, recorrerei aos muitos exemplos de psicologia perceptiva e neurologia que já examinamos neste livro. Estes exemplos mostrarão que o conjunto de circuitos que corporifica a nítida qualidade subjetiva da consciência reside principalmente em partes dos lobos temporais (como a amígdala, o septo, o hipotálamo e o córtex insular) e numa única zona de projeção nos lobos frontais - o giro cingulado. E a atividade destas estruturas deve preencher três critérios importantes, que chamo as três leis das qualia (“qualia” significa simplesmente a impressão crua e tosca de sensações como a qualidade subjetiva de “dor” ou de “vermelho” ou de “nhoque com trufas”). Meu objetivo em identificar estas três leis e as estruturas especializadas que as corporifiquem é estimular mais investigações sobre a origem biológica da consciência” (Ramachandram, 2004, p.288-289).

O autor usa dois exemplos para ilustrar o chamado enigma dos qualia. Um cientista daltônico pode analizar, compreender e fazer um relato detalhado sobre uma cor vermelha, mas não terá a experiência real e inefável da cor vermelha; pode fazer o mesmo para com o estudo de um peixe elétrico, mas nunca saberá qual a sensação de eletricidade que o peixe sente. São dois relatos diferentes, embora complementares: relatos em terceira e primeira pessoa. Não haveria barreira epistemológica entre cérebro e mente, apenas diferenças de traduções de uma linguagem para outra. Estendendo esse raciocínio ao cérebro e ao estudo da consciência, seriam duas linguagens mutuamente ininteligíveis: a linguagem dos impulsos nervosos (a linguagem científica em terceira pessoa) e a linguagem falada (a experiência em primeira pessoa). No diálogo entre as duas linguagens (a do cientista e da pessoa que experiência), “a inefável ‘experiência’ em si perde-se na tradução”. Mas se ao invés da linguagem falada, se conectasse um cabo de vias neurais no cérebro do cientista daltônico? Ele teria a mesma experiência que a pessoa que vê a cor vermelha: “Esta hipótese destrói a afirmação dos filósofos de que existe uma barreira lógica intransponível para entender as qualia. Em princípio, você pode experimentar as qualia de outra criatura, mesmo do peixe elétrico. Se você pudesse descobrir que a parte eletrorreceptora do cérebro do peixe está fazendo e de alguma forma pudesse enxertá-la nas partes pertinentes de seu cérebro com todas as devidas conexões associadas, então começaria a experimentar as qualia do peixe elétrico. (…) A ideia-chave aqui é que o problema das qualia não é o único no problema corpo-mente. Não é diferente em espécie dos problemas que nascem de qualquer tradução, e assim não há necessidade de invocar uma grande divisão na natureza entre o mundo dos qualia e o mundo material. Existe apenas um mundo com muitas barreiras de tradução. Se você puder superá-las, o problema desaparece” (Ramachandram, 2004, p.292-3).

Neste raciocínio intrigante, na busca de explicações biológicas para as qualia, o dilema ainda se mantém: existe um estilo particular de processamento de informações, ou tipos de neurônios exclusivamente associados com as qualia? Algumas sugestões de cientistas surgiram: “as qualia surgem de um conjunto de neurônios nas camadas inferiores das áreas sensoriais primárias, porque estas são as que se projetam para os lobos frontais onde muitas das chamadas funções superiores são executadas”. Ou que “as formas reais de impulsos nervosos (picos) procedentes de regiões do cérebro amplamente separadas ficam “sincronizadas” quando você presta atenção a alguma coisa e toma consciência dela. Em outras palavras, é a própria sincronização que leva à percepção consciente” (Ramachandram, 2004, p.294-295).

O debate está aí posto. De todo modo, as qualia necessitariam preencher três leis importantes, e a investigação sobre a suposta origem biológica da consciência teria de correlacioná-los com as estruturas neurais especializadas que os corporificam. Seriam as características funcionais dos qualia:

• irrevocabilidade no lado das informações (a percepção carregada de qualia não é revogável, é resistente à adulteração pelos centros superiores do cérebro – por ex., amarelo é amarelo);
• flexibilidade no lado do resultado (quando experimentamos qualias amarelos, poderíamos dizer amarelo, ou pensar em bananas amarelas, etc.);
• e a terceira: “Para tomar decisões com base em uma representação carregada de qualia, a representação precisa existir por tempo suficiente para você trabalhar com ela. Seu cérebro precisa segurar a representação num acumulador intermediário ou na chamada memória imediata” (Ramachandram, 2004, p.300-301).

A noção das qualia, enquanto modos perceptivos do cérebro, avança muito na compreensão da consciência? Não seriam apenas percepções diferenciais, e parciais, sujeitas às delusões da mente condicionada (a do cientista, a terceira pessoa que busca traduzir de um modo “objetivo” dados empíricos do cérebro, e a do sujeito, a primeira pessoa, que experiencia a realidade através do contato com os objetos)? E tudo isso alivia em algo o sofrimento da mente deludida? Este é um aspecto marcante da perspectiva da ciência budista da mente: a compreensão e superação do sofrimento na mente.

Ainda assim, Ramachandram se pergunta se essas proposições forneceriam pistas sobre em que partes do cérebro poderiam estar as qualia. Parece que esta pergunta traz novamente a busca dos chamados Correlatos Neurais da Consciência (CNC). E eis uma sua proposição intrigante:

“É surpreendente que muitas pessoas pensem que a sede da consciência está nos lobos frontais, porque nada de dramático acontece às qualia ou consciência per se, se você danifica os lobos frontais – embora a personalidade do paciente possa ser profundamente alterada (e ele possa ter dificuldade em desviar a atenção). Eu sugeriria que em vez disso a maior parte da ação está nos lobos temporais para ver o significado das coisas, e seguramente esta é uma parte vital da experiência consciente. Sem essa estrutura você é um zumbi (…), capaz somente de dar um único resultado correto em resposta a uma demanda, mas sem nenhuma capacidade de sentir o significado do que está fazendo ou dizendo”.(Ramachandram, 2004, p.306-7)

            Qualia e consciência estariam associados com os estágios intermediários de processamento, acontecendo principalmente “no lobo temporal e nas estruturas límbicas associadas, e nesse sentido, os lobos temporais são a interface entre percepção e ação. A prova disto vem da neurologia; lesões cerebrais que produzem profundos distúrbios de consciência são aquelas que geram processos nos lobos temporais, enquanto lesões em ouras partes do cérebro produzem apenas distúrbios menores em matéria de consciência. Quando os cirurgiões estimulam eletricamente os lobos temporais de epilépticos, os pacientes têm nítidas experiências conscientes. Estimular a amígdala é o meio seguro  de ‘repassar’  toda uma experiência, como uma memória autobiográfica ou uma nítida alucinação. Acessos nos lobos temporais são muitas vezes associados não só com alterações de consciência no sentido de identidade pessoal, destino pessoal e personalidade, mas também com nítidas qualia  - alucinações como odores e sons. (...) Os odores, dores, paladares e sentimentos – todos gerados nos lobos temporais – sugerem que esta região do cérebro está intimamente envolvida com qualia e percepção consciente. Outra razão para escolher os lobos temporais – especialmente o esquerdo – é que nele que grande parte da linguagem é representada”. (Ramachandram , 2004, p.307)

Como os qualia (“a essencial particulariedade e incomunicabilidade de estados mentais”, a “impressão crua” das sensações) não existem soltas no ar, Ramachandram evoca o outro lado necessário da mesma moeda: a individualidade, o “eu” dentro do sujeito que experimenta. Me pergunto se a noção de qualia não seria apenas outra forma de traduzir a noção budista dos agregados da sensação, percepção e formações mentais. De todo modo, reencontramos a questão da individualidade, cujas características elencadas por Ramachandram seriam as seguintes (para as quais, segundo o autor, se deveria depois buscar as estruturas cerebrais que estariam envolvidas em cada um desses aspectos):

• A individualidade corporificada (envolve a imagem corporal, maleável; a “propriedade” do corpo seria uma ilusão)
• A individualidade arrebatada (capacidade de experienciar emoções, pelo sistema límbico e amígdala)
• A individualidade executiva (monitorada pelas interações cerebrais das representações que fazemos do mundo, dos objetos e de nós mesmos, cuja estrutura neural envolvida seria a circunvolução do giro cingulado anterior)
• A individualidade mnemônica (autobiografia e memórias que buscam ser organizadas e reorganizadas constantemente numa história coerente para permitir a auto-construção do indivíduo e uma visão coerente do mundo, envolvendo hipocampo e amígdala)
• A individualidade unificada (impondo coerência à consciência, preenchimento e confabulação – processos de controle, envolvendo a amígdala e o giro cingulado anterior)
• A individualidade vigilante
• A individualidade conceitual e a individualidade social (o conceito abstrato que se faz de si mesmo, através das percepções do próprio corpo, da informação autobiográfica: a necessidade de impor estabilidade, coerência interna e coerência com o comportamento; nossa auto-representação como unificados, buscando objetivos sociais e ser inteligível aos outros, capazes de reconhecer nossa identidade passada e futura, nos capacitando a ser vistos como parte da sociedade (Ramachandram, 2004, p.309-317).

Todas essas características com as quais compomos (e buscamos proteger) nosso senso de “eu” seriam supostamente reais. Reencontramos essas observações nas Neurociências e nas vertentes da Psicologia ocidental, a respeito do “eu”. Se é verdade que também reaparecem nos comentários budistas, mas na ciência budista da mente há uma ênfase determinante: são reais apenas no sentido de que existem como fenômenos criados pela mente condicionada, mas são apenas relativamente reais. De fato, são delusões do ego. Ramachandram também termina por concluir algo semelhante: “a individualidade, que quase por definição é inteiramente privada, é em grau significativo uma construção social – uma história que você compõe para os outros. (…) A ciência – a cosmologia, a evolução e especialmente as ciências do cérebro – está nos dizendo que não temos nenhuma posição privilegiada no universo e que nossa sensação de ter um espírito, uma alma imaterial particular “observando o mundo”, é realmente uma ilusão (como há muito tempo tem sido enfatizado por tradições místicas orientais como o hinduismo e o zen-budismo). Uma vez que você compreenda que, longe de ser um espectador, você é parte do eterno fluxo e refluxo de acontecimentos no cosmo, esta percepção é muito libertadora”. (Ramachandram, 2004, p.318-20).

O senso de um eu-ego já está na consciência desde o momento da concepção embrionária, como um ressurgir das tendências anteriores de apego e delusão. Conforme o bebê vai crescendo, o senso inicial de uma “mente oceânica” vai se diferenciando, o bebê começa a perceber distinções entre ela e o mundo (inicialmente em relação ao mundo dos pais); ela recebe um nome e percebe que se associa um nome a “mim”, e nesse gradual processo o senso de “eu-corpo-desejo” coagula uma ideia de individualidade-personalidade distinta, que precisa ser alimentada e defendida (Bhante Rahula, 2011).

É apenas através do cultivo da plena atenção sobre nossos processos corporais e mentais que podemos gradualmente desconstruir a ilusão do ego. Muitas vezes é o sofrimento agudo que nos impele a buscar sair do circuito de geração e experienciação de estados mentais dolorosos. Concentração e plena atenção nos nossos processos corporais e mentais irão abrindo o olho da sabedoria e do insight (vipassana) de que as experiências dos cinco agregados (corpo, sensação, percepção, pensamentos-emoções e a própria consciência) são apenas fenômenos impermanentes, insatisfatórios e sem substância fixa. A meditação nos permite ver, momento a momento, a ausência de substancialidade dos cinco agregados com que até então nos identificávamos como sendo eu-meu-mim; eu-meu-corpo, eu-meu-sensações, eu-meu-percepção, eu-meu-pensamentos, eu-meu-consciência. Este é o profundo ensinamento do Buddha sobre o não-eu (anatta) (1).

O neurocientista Francisco Varela, em suas pesquisas neurofisiológicas, conclui na mesma direção, de que não há no cérebro nenhuma instância de base de um ego-self. A transitoriedade também é a do próprio cérebro; o que temos são apenas agregados de experiências, e que essas experiências não podem ser definidas de forma exata. O ego-self é apenas um constructo mental criado pelo apego-desejo:

“Poderia parecer que, em nossa busca de um self nos agregados, saímos de mãos vazias. Tudo o que tentamos agarrar parecia escorregar por entre nossos dedos, deixando-nos com a sensação de que não há nada a que nos apoiarmos. Neste ponto, é importante fazer uma pausa, e outra vez lembrar o que era exatamente eu não conseguíamos encontrar. Não deixamos de encontrar o corpo físico, embora tenhamos tido que admitir que sua designação como meu corpo depende muito de como escolhemos ver as coisas. Nem deixamos de localizar nossos sentimentos e sensações, e também encontramos nossas variadas percepções. Encontramos disposições, desejos, motivações – em resumo, tudo o que forma nossa personalidade e o sentido emocional do self. Descobrimos também todas as variadas formas pelas quais podemos estar conscientes: consciência de ver e ouvir, sentir cheios, ter paladar, tocar, mesmo a consciência de nossos processos de pensamento. Assim, a única coisa que não descobrimos foi um sel ou ego realmente existente. Mas observe que encontramos a experiência, e simplesmente não pudemos discernir ali nenhum self, nenhum “eu”.

            Por que então nos sentimos de mãos vazias? Nós nos sentimos dessa forma por termos tentado agarrar algo que, em primeiro lugar, nunca este lá. Esta tentativa de agarrar continua o tempo todo – é exatamente a resposta emocional profundamente enraizada que condiciona todo nosso comportamento e molda todas as situações nas quais vivemos. É por esta razão que os cinco agregados são descritos como os “agregados do apego” (upadanaskandha ). Nós – ou seja, nossa personalidade que em grande medida pode ser vista como formações disposicionais – nos apegamos aos agregados como se eles fossem o self, quando de fato, eles são destituídos (sunya) de um self” (Varella, 2003, p.91-92).

            Nessa mesma linha, encontramos as observações dos neurocientistas Rich Hanson (neuropsicólogo) e Richard Mendius (neurofisiologista). Resumidamente:

            “O self-como-sujeito é o senso elementar de ser um experienciador de experiências. A conscientização (awarenes) tem uma inerente subjetividade, uma localização em uma perspectiva particular (por ex., ao meu corpo, não ao seu). Esta localização é embasada num engajamento do corpo com o mundo. Por exemplo, quando você gira a cabeça para escanear um quarto, o que você vê está especificamente relacionado com seus próprios movimentos. O cérebro indexa através de inúmeras experiências para encontrar o dado comum: com o experienciar delas em um particular corpo. De fato, a subjetividade surge da distinção inerente entre este corpo e aquele mundo; num sentido mais amplo, subjetividade é gerada não apenas no cérebro, mas nas fluídas interações que o corpo tem com o mundo.

            Então o cérebro indexa momentos de subjetividade para criar um aparente sujeito que – ao longo do desenvolvimento, da infância à maturidade – é elaborado e enraizado através da maturação do cérebro, notavelmente no córtex pré-frontal. Mas não há um sujeito inerente na subjetividade; nas práticas avançadas de meditação, encontramos uma conscientização desnuda (bare awareness) sem um sujeito. A conscientização (awareness) requer subjetividade, mas não requer um sujeito.

            Em suma, do ponto de vista neurológico, a sensação cotidiana de ser um self unificado é uma ilusão: o aparentemente coerente e sólido “Eu” é de fato construído por muitos subsistemas e sub-subsistemas no curso do desenvolvimento, sem um centro fixo, e a sensação fundamental de que há um sujeito da experiência é fabricada por miríades de momentos disparados de subjetividade”. (Hanson, Mendius, 2009, p.210-211)

Quando nos colocamos na prática da plena atenção, de modo a ver com clareza que o que chamamos de “eu” é apenas uma ilusão, nos defrontamos com uma aparente contradição com as proposições da Psicologia ocidental, que advoga a necessidade de construirmos um ego saudável e estruturado. Joseph Goldstein nos abre importantes perspectivas sobre esse tema. “Ego” e “eu” são palavras que se usa de modos diferentes, o que pode criar confusão:

            “No sentido psicológico ocidental, “ego” ou “eu” são referentes a um determinado tipo de equilíbrio e de força da mente. Nesse sentido, ter um ego fortemente desenvolvido é essencial para nosso bem estar. Precisamos ter esse equilíbrio para funcionar no mundo como seres humanos em equilíbrio. Pessoas com um senso pouco desenvolvido do eu não conseguem ter um bom desempenho no mundo, nem são capazes de encontrar paz em si mesmas.

            O uso budista da palavra eu é diferente desse conceito de equilíbrio ou de maturidade mental-emocional. Quando o Buda se refere ao “eu”, ele está falando de uma ideia ou de um conceito que temos de uma essência imutável que está passando por uma experiência. Portanto, quando ele fala da ausência do eu, ou de anatta, no idioma Páli, eles diz que é preciso compreender que a experiência não se refere a qualquer pessoa – essa é a compreensão crucial e transformadora que se torna tão profunda em nossa prática.

            A introvisão significa ver de modo claro e profundo que tudo na mente e no corpo está num processo de transformação, e que não existe ninguém por trás disso, ninguém a quem isso esteja acontecendo. O pensamento é o pensador; não existe pensador separado do pensamento. É a raiva que tem raiva e é o sentimento que sente. Tudo é apenas o que é e unicamente o eu é. A experiência não pertence a ninguém. É justamente esse processo adicional e errado de referência a alguém, a alguma ideia de um âmago do ser, que acaba criando o que o Buda chamou de ego ou “eu”. Nós sobrepomos uma ideia de ego ou de eu a uma realidade que, na verdade, não tem ego nem eu.

             O processo de desenvolver uma forte estrutura de ego e de ver a natureza destituída de um eu da experiência são bastante complementares, apesar de as palavras parecerem contraditórias. Um saudável senso do eu se desenvolve quando aprendemos a ver claramente e a aceitar todas as diferentes partes do que somos; compreender o vazio do eu advém de não acrescentar a estas partes o fardo da identificação. (...)

            Um eu saudável e um eu vazio não são contraditórios; eles apenas nas parecem sê-lo porque usamos a mesma linguagem para descrever duas coisas totalmente diferentes. Todo o caminho da meditação trata da compreensão de que o eu como entidade imutável é uma ficção, uma ilusória construção mental. Mas para perceber essa verdade, precisamos do tipo de equilíbrio a que a psicologia ocidental se refere quando fala de um ego forte. Sem qualidades de equilíbrio e força mental, é impossível ver que não existe um eu único e imutável que é o sujeito da experiência. Portanto, podemos afirmar, usando os dois significados da palavra, que para abrir mão do ego primeiro é preciso desenvolvê-lo”. (Goldstein, 1999, p.111-113)

            Do ponto de vista da prática da meditação, iniciamos nosso treinamento com o propósito de superar o sofrimento, com o senso de “eu estou vendo melhor a realidade do meu corpo e mente”, “eu estou me desenvolvendo”, etc. Não é útil, ao menos para a maioria de nós, começarmos querendo “destruir” o eu, o ego; ao contrário, buscamos tornar nosso senso de ego menos ignorante, menos reativo e menos apegado; e à medida que esse senso de “eu” se torna mais equilibrado, usamos desse equilíbrio e da sabedoria para investigar esse “eu” e vermos que não precisamos dele, que é uma delusão. É como uma criança que começando a andar, usa de um andador com que se identifica; aos poucos, conseguindo andar por si, vê que o andador é só um apoio, agora desnecessário e não é o seu “eu”.

            E se o senso de “eu” é uma delusão, de onde vem? Como a mente cria essa noção condicionada e deludida de um “eu”? Vimos que, de acordo com os ensinamentos do Abhidhamma, a mente é cognição, a faculdade do saber, conhecer. A mente é intrinsicamente pura, luminosa, sábia e invisível. É a mente que conhece todos os agregados do corpo, sensação, percepção, formações mentais e consciência. Neurocientistas como Ramachandram, Varela, nos lembram que a consciência é o mistério mais profundo da condição humana. Mas se a mente é luminosa, por que a ignorância geradora de sofrimento? Sucede que, conforme vimos, a cognição da mente vem acompanhada, momento a momento, de fatores mentais como a raiva, a cobiça, a amorosidade, etc. Esses fatores mentais tingem a coloração com tons saudáveis ou não saudáveis. E há um fator que cria e nos mantém presos à noção convencional do “eu”:

            “Trata-se do fator da percepção, cuja função é a de reconhecer as aparências fixando-se nas suas características distintivas e, depois, armazenando-as na memória através do uso de conceitos. Mulher, homem, árvore, automóvel, cidade, oceano são alguns poucos exemplos das inúmeras coisas que reconhecemos através da percepção.

            Quando a percepção surge juntamente com a atenção total (a plena atenção), o reconhecimento superficial serve como moldura para o aparecimento de uma observação mais profunda e cuidadosa. Mas quando a percepção funciona sem a atenção total, reconhecemos e lembramos apenas da aparência das coisas” (Goldstein, 1999, p.128)

            “(...) Enquanto continuarmos presos a essa ilusão, não conseguiremos ver claramente ou compreender a natureza impermanente e insubstancial dos fenômenos momentâneos. Apesar de podermos conhecer a verdade da mudança intelectualmente, para que ela transforme nossa compreensão é preciso vivenciá-la em nós mesmos”. (Goldstein, 1999, p.129) (2)

            Se com plena atenção, conscientizamos pela meditação que não há um eu, se há apenas agregados fenomênicos de corpo-sensação-percepção-pensamento-consciência, o que resta de “nós”? Esse temor de aniquilamento, do nada, surge em nossa mente. Queremos algo fixo, algum chão sólido para nos apoiar, que fosse uma “alma”, um “espírito”, ou algo similar. Este temor pode chegar a se transformar no Síndrome de Pânico. É possível que esse distúrbio psíquico, frequente em nossa civilização moderna, tenha certa relação com essa percepção, não claramente elaborada, da insubstancialidade da realidade fenomênica, disparando como que sem causa aparente, o medo de algo difuso, que pode chegar a avolumar-se até a sensação de terror, de um pânico, uma ansiedade descontrolada.

            Em um nível menos dramático, é frequente que em retiros mais longos, praticantes experienciem certo temor diante da percepção de anatta, não-eu. Alguns mestres contam histórias curiosas sobre praticantes que, de súbito, agarram um abajur e começam a bradar em voz alta: “Eu sou fulano de tal, moro em tal lugar” e assim por diante, ou que peçam desesperadamente um jornal para lerem e se sentirem “reconectados com o mundo de fora”, tal é a força do apego à noção de um “eu” como “chão fixo”.

            Outro lado do risco em uma conscientização equivocada sobre o não-eu é o de cairmos no outro extremo, o do nihilismo. O neurocientista Francisco Varela, após o exame neurofisiológico do caráter momentâneo, descontínuo, não-unificado e transitório do próprio cérebro, dialoga com as Ciências Cognitivas a respeito da ausência de fundações fixas no mundo fenomênico (3). Reconhecendo empiricamente a impossibilidade de encontrarmos “fundações fixas” no Universo, muitos representantes da Ciência e Filosofia ocidental terminam por concluir pelo nihilismo, pela negação das proposições das religiões e pelo conformismo, desconhecendo os aportes das tradições orientais a esse respeito.

            Chão fixo ou nihilismo aniquilacionista? Nem um, nem outro. Há outra alternativa, o caminho do Meio. O processo cognitivo da mente tem três termos: o sujeito que conhece, o objeto conhecido, e o processo cognitivo. Em nossos processos mentais, quando desatentos, tendemos a oscilar entre o foco nos objetos e o foco no sujeito-ego. Tendemos ora a grudar nos objetos (tentando nos apegar aos objetos que consideramos agradáveis e rejeitar aqueles que consideramos desagradáveis), ora a pular nossa atenção para o “sujeito-eu” que conhece: “vejo isto, penso aquilo”, etc. Estamos condicionados a focar e experienciar esses dois termos. Mas quase não percebemos o importante termo do meio: o processo do conhecendo, a pura conscientização (awareness). É aí exatamente que se abre o espaço da mente para o insight sobre o não-eu: apenas cognição, conhecendo, sem sujeito.

            O treinamento da Plena Atenção nos permite escapar da prisão focada no eu-sujeito/objeto, vendo-os como apenas nuvens passageiras no espaço aberto e vazio. A própria conscientização é percebida como um processo cambiante; a faculdade do saber, como todos os agregados, surge e desaparece continuamente, no espaço vazio da mente, nenhum “chão-coisa fixa”. Segundo um símile proposto por Goldstein:

            “Quando percebemos que o próprio processo de conscientização é impermanente, sempre mudando, podemos nos sentir abalados, pois nos identificamos com a faculdade do saber como sendo o nosso eu: “Imagine que você saltou de um avião e caiu em queda livre durante os primeiros minutos. Imagine a sensação de liberdade, de excitação. Mas depois você percebe que não tem pára-quedas e entra em pânico enquanto continua caindo. Caindo, caindo, caindo, apavorado pelo fato de não ter pára-quedas...até que chega um momento que você  percebe que não existe chão! Nesse instante da compreensão, você simplesmente sente o prazer da experiência.

            Frequentemente, passamos por uma seqüência emocional semelhante na prática da meditação. À medida que a nossa identificação com as coisas diminui, e que vemos como as coisas mudam rapidamente, a princípio pode ocorrer uma verdadeira excitação, um sentido maior de amplitude. No entanto, sentimentos de pânico podem surgir quando percebemos que nada existe a que possamos nos agarrar. Tanto os objetos da consciência como a faculdade de conhecê-los estão continuamente caindo, feito a água de uma cachoeira. Compreendemos agora, num nível mais profundo, que nada a que nos agarramos em busca de segurança realmente nos proporcionam o que buscamos. Mas, continuando com a prática, surge a iluminação: não existe chão onde cair nem alguém que possa cair sobre ele – apenas fenômenos que se sucedem continuamente. Sentimos, então, o grande alívio do nos soltar, a profunda sensação de equanimidade e a alegria do bem estar”.[Goldstein, 1999, p. 134-135)

            Quando a mente se purifica das impurezas da cobiça, ódio e delusão-ignorância, realizando a natureza impermanente e insubstancial dos fenômenos do corpo e da mente, se alcança o estado liberto, Nibbana, o Vazio (suññata). Para além da dualidade, e mesmo da unidade: seria o Zero. Mas o vazio, embora não seja nenhum “chão-coisa fixa”, nada a se apegar, não significa o nada, ausência de realidade. Ao contrário, é a Realidade Última, Suprema, Incondicionada:

            “Existe um não-nascido, um não-tornado-a-ser, um não-feito, um não-composto; se fosse por este não-nascido, não-tornado-a-ser, não-feito, não-composto, não seria possível neste mundo nenhuma evasão do nascimento, do porvir, do fazer, da composição. Mas porque existe este não-nascido, não-tornado-a-ser, não-feito, não-composto, é possível que haja uma evasão do nascimento, do porvir, do fazer, da composição”. (Udana, 80)

            De forma sintética e direta, Buddha expõe o treinamento para libertarmos a mente do emaranhado da identificação com os agregados corpo-mente:

            “Então, Bahiya, você deve treinar assim: Com relação ao que é visto, haverá apenas o visto. Com relação ao que é ouvido, haverá apenas o ouvido. Com relação ao que é sentido, haverá apenas o sentido. Com relação ao que é conscientizado, haverá apenas o conscientizado. Assim é como você deve treinar. Quando com relação ao que é visto houver apenas o visto, ao que é ouvido houver apenas o ouvido, ao que é sentido houver apenas o sentido, ao que é conscientizado houver apenas o conscientizado, então, Bahiya, você não estará ‘com aquilo.’ Quando você não estiver ‘com aquilo,’ então você não estará ‘naquilo.’ Quando você não estiver ‘naquilo,’ então você não estará aqui, nem além e tampouco entre os dois. Isso em si mesmo é o fim do sofrimento.” (Bahiya Sutta, Udana I.10, em www.acessoaoinsight.net).

            Nesse ensinamento direto, Buddha orienta para a prática de focalizar nossa atenção sempre apenas no processo do conhecendo, e “você não estará ‘com aquilo’”, “você não estará ‘naquilo’”, as proliferações e formações mentais, as “novelas “que a mente cria, que nos aprisionam nos objetos ou na noção ilusória de um “sujeito que conhece”, pois dessas formações mentais contaminadas surge o desejo, e o apego/aversão, acoplados a um senso de um “eu” que gosta ou desgosta, e o gostar/desgostar realimenta o desejo, o apego/aversão, que condiciona o prosseguimento do vir-a-ser, com toda a massa de sofrimento, e ficamos enredados nessa cadeia da originação dependente, o samsara, com seus incessantes ciclos de nascer e morrer.

            “Não havendo nenhum desejo de ter, nem de ser um alguém, a mente se dissolve dentro de suññata (o vazio, que é nibbana). (...) Em conclusão, gostaria de dizer novamente que este tema único do vazio cobre tudo do Budismo, pois o Buddha respirava com suññata. O vazio é a teoria, a prática, e o fruto da prática. Se alguém estuda, deve estudar suññata; se alguém pratica, deve ser para o fruto de suññata; e se alguém recebe qualquer fruto, deve ser este suññata, de modo que finalmente se atinge o que é o supremamente desejável. Não há nada além do vazio. Quando isso é realizado, todos os problemas cessam” (Buddhadasa Bhikkhu, 2000, p. 105 e 114).
           
            Suññata, o Vazio, é a qualidade intrínseca de tudo, é a mente livre de apego, cobiça, ódio, delusão. É Nibbana, a Realidade-Mente Incondicionada. A conclusão da jornada. A Felicidade Plena.

            O que precisamos para realizar Nibbana? Praticar, praticar, praticar.


Notas

(1) Sobre a noção do “não-eu” nos ensinamentos budistas, veja: Anattalakkhana Sutta, Samyutta Nikaya (SN) XX11, 59, www.acessoaoinsight.net
(2) Sobre a noção da “personalidade”, veja em Goldstein, Joseph. Personalidade e Transformação, Cap. 4, em Meditação e Visão Interior. Aprendendo a ser livre. São Paulo: Pensamento, 1999]
(3) Varela, Francisco; Thompson, Evan; Rosch, Eleanor. Mundos sem Fundação, cap. V, A Mente Corpórea: Ciências cognitivas e Experiência Humana. Lisboa: Ed. Instituto Piaget, 2003.



Referências

Bhante Rahula. Superando a ilusão do Eu. São Paulo: Casa de Dharma, 2011, www.casadedharmaorg.org
Buddhadasa Bhikkhu. Heartwood of the Bodhi Tree.  The Buddha’s Teaching of Voidness. Boston: Wisdom, 2000.
Goldstein, Joseph. Meditação e Visão Interior.  Aprendendo a ser livre. São Paulo: Pensamento, 1999.
Hanson, Rick, Mendius Richard. The practical neuroscience of Buddha’s Brain. Happiness, love & wisdom. USA: New Harbinger Publications, 2009.
Ramachandram, V.S., Blakeslee, Sandra. Fantasmas no Cérebro: uma investigação dos mistérios da mente humana. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2004.
Varela, Francisco; Thompson, Evan; Rosch, Eleanor. A Mente Corpórea: Ciências cognitivas e Experiência Humana. Lisboa: Ed. Instituto Piaget, 2003.





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Meditação da Plena Atenção, Neurociências e Saúde

10

A Consciência, as formações mentais e o Sistema Nervoso:
O processo cognitivo e a formação dos karmas

Arthur Shaker Fauzi Eid


            Momento a momento, a consciência surge e desaparece, junto com os fatores mentais que tingem nossa experiência mental, dependente dos fatores saudáveis ou não saudáveis. Havendo consciência dos objetos, há o contato.

            Não é difícil percebermos a momentariedade impermanente dos processos corporais, ou das sensações e percepções. Mas por que é difícil percebermos a impermanencia da consciência? Nossa percepção tende a considerar que a consciência é uma realidade contínua e permanente, e que o que apenas mudaria seriam os conteúdos da consciência. Não vemos com clareza a impermanência da consciência, em parte devido à nossa baixa concentração e plena atenção, mas também porque a velocidade da mudança da consciência é extremamente rápida, por isso a sensação de estabilidade e fixidez da consciência. Buddha dizia que num piscar de olhos há milhões de momentos de consciência, surgindo e desaparecendo. Imagine as pás de um ventilador: quando paradas, podemos vê-las como objetos distintos, mas quando em movimento percebemos apenas como uma circunferência difusa. Com a consciência seria algo semelhante.

            Quais tipos de fatores mentais acompanham momento a momento a consciência? Os fatores mentais (cetasika) são como que o séquito que sempre vêm junto com o rei. Auxiliam a consciência como funções específicas na cognição operada pela consciência. Esses fatores aparecem de modo mais detalhado nos tratados do Abhidhamma (1). São elencados cinquenta e dois fatores mentais:

·         7 Universais (presentes em todo momento de consciência):
1.      Contato
2.      Sensação
3.      Percepção
4.      Volição
5.      Unicidade num único ponto
6.      Faculdade vital
7.      Atenção

·         6 Ocasionais
1.      Pensamento aplicado
2.      Pensamento sustentado
3.      Decisão
4.      Energia
5.      Extase
6.      Aspiração

·         14 Não saudáveis
1.      Delusão
2.      Ausência de vergonha moral
3.      Destemor moral
4.      Inquietação
5.      Cobiça
6.      Entendimento Incorreto
7.      Presunção
8.      Raiva
9.      Inveja
10.   Avareza
11.  Preocupação
12.  Preguiça
13.  Torpor
14.  Dúvida

·         25 Saudáveis e Belos
1.      Convicção
2.      Atenção Plena
3.      Vergonha moral
4.      Temor moral
5.      Não-cobiça
6.      Não-raiva
7.      Neutralidade mental
8.      Tranquilidade no corpo mental
9.      Tranquilidade na consciência
10.   Leveza do corpo mental
11.   Leveza da consciência
12.   Maleabilidade do corpo mental
13.   Maleabilidade da consciência
14.   Manuseabilidade do corpo mental
15.   Manuseabilidade da consciência
16.   Proficiência do corpo mental
17.   Proficiência da consciência
18.   Retidão do corpo mental
19.   Retidão da consciência
20.   Linguagem correta
21.   Ação correta
22.   Modo de vida correto
23.   Compaixão
24.   Alegria altruísta
25.   Faculdade da sabedoria (2)

Um dos importantes fatores mentais é a volição, intenção (cetana). É a intenção da ação (física, verbal ou mental) que confere a qualidade saudável ou não-saudável da ação. É um fator importante porque é a ação volitiva que é o karma, e experienciaremos mais cedo ou mais tarde os frutos da ação kármica (vipakacitta). Karma (kamma) é um tema complexo e relativamente mal compreendido, equivocadamente interpretado como uma espécie de fardo, maldição, um “destino implacável, cruel e inexorável”. Compreender corretamente o karma é compreendê-lo como ação volitiva, cuja intenção (saudável ou não saudável) gera frutos saudáveis ou não saudáveis, a serem experienciados como estados mentais de sofrimento (akusala vipakacitta) ou felicidade (kusala vipakacitta).

            Como se dá o processo cognitivo da mente, em cada momento de consciência? Segundo o Abhidhamma, em cada momento de consciência há 17 sub-momentos, cada qual realizando certa função no processo cognitivo mental. Resumidamente, quando um objeto (visual, sonoro, olfativo, gustativo, tátil ou mental) contata o órgão sensorial correspondente e há a atenção da consciência naquele momento, surge a consciência momentânea correspondente. E dependendo de quais dos fatores mentais estejam presentes nesses sub-momentos do processo cognitivo, experienciamos estados mentais saudáveis ou não-saudáveis, sofrimento ou felicidade. E como podemos aplicar essa compreensão conceitual em nosso treinamento da Meditação da Plena Atenção? Treinando a concentração e plena atenção inicialmente em objetos mais perceptíveis, como o corpo e as sensações, ganhamos progressivamente mais habilidade para contemplarmos o que ocorre em nosso corpo e mente em cada momento, observando silenciosamente: isto que surge, é saudável? Não-saudável? Devo alimentar? Abandonar? Iremos ganhando clareza em níveis mais sutis, refinados de nossa realidade física e mental, uma maior compreensão pela visão direta de nossos pensamentos, intenções sutis que brotam de camadas subconscientes. Assim, podemos aceitar o que surge, e decidirmos se queremos reforçar ou abandonar aquele padrão de pensamento e emoção. Ao invés de reagirmos automaticamente, podemos responder com sabedoria e amorosidade, e com isso trabalhamos progressivamente pelo enfraquecimento de padrões kármicos não-saudáveis, e fortalecemos aqueles padrões saudáveis, que irão produzindo estados mentais de maior felicidade, libertando a mente do sofrimento.

            Nesse processo de refinamento e aprofundamento no conhecimento, desenvolvemos sabedoria e desapego. Compreendemos que o apego gera sofrimento, ansiedade, medo, tensões no corpo e na mente. Mas atenção: nesse processo de treinamento, enfrentamos muitas dificuldades, devido à presença de raízes não-saudáveis na mente. Os anticorpos da saúde mental enfrentam inicialmente os vírus mais grosseiros e comuns, os cinco obstáculos (nivarana): torpor e preguiça, dúvida, animosidade aversiva (a má vontade, ou vontade doentia, raivosa, ressentida), agitação e preocupação e desejo sensual, que impedem temporariamente a concentração. Segundo o Maha Satipatthana Sutta:

CONTEMPLAÇÃO DOS DHAMMAS

            E como, bhikkhus, um bhikkhu permanece contemplando o Dhamma nos dhammas (3)?

Os Cinco Obstáculos


            Aqui, bhikkhus, um bhikkhu permanece contemplando o Dhamma nos dhammas nos cinco obstáculos. Como, bhikkhus, um bhikkhu permanece contemplando o Dhamma nos dhammas dos cinco obstáculos?
            Aqui, bhikkhus, quando um desejo sensual está presente nele, o bhikkhu reconhece: “Existe em mim desejo sensual”; ou quando o desejo sensual está ausente nel, ele reconhece: “Não existe em mim desejo sensual”. Ele também compreende como é despertado o desejo sensual que ainda não despertou, ele conhece a razão que leva ao abandono de desejos sensuais despertos, e ele também conhece a razão que desejos sensuais abandonados não despertem no futuro.
            Quando a má-vontade está presente ele reconhece: “Existe em mim má-vontade”; ou quando a má-vontade está ausente, ele reconhece: “Não existe em mim má-vontade”. Ele também compreende como é despertada a má-vontade que ainda não despertou, como acontece o abandono da má-vontade despertada, e como acontece que a má-vontade abandonada não desperte no futuro.
            Quando a preguiça e torpor estão presentes ele reconhece: “Existe em mim preguiça e torpor”; ou quando a preguiça e o torpor estão ausentes, ele reconhece: “Não existe em mim preguiça e torpor”. Ele também compreende como são despertados a preguiça e o torpor que ainda não despertaram, como acontece o abandono da preguiça e torpor despertados, e como acontece que a preguiça e torpor abandonados não despertem no futuro.
            Quando a inquietação e o remorso estão presentes ele reconhece: “Existe em mim inquietação e remorso”; ou quando inquietação e remorso estão ausentes, ele reconhece: “Não existem em mim inquietação e remorso”. Ele também compreende como são despertados a inquietação e o remorso que ainda não despertaram, como acontece o abandono da inquietação e do remorso despertados, e como acontece que a inquietação e remorso abandonados não despertem no futuro.
            Quando a dúvida está presente ele reconhece: “Existe dúvida em mim”; ou quando a dúvida está ausente, ele reconhece: “Não existe dúvida em mim”. Ele também compreende como é despertada a dúvida que ainda não despertou, como acontece o abandono da dúvida despertada, e como acontece que a dúvida abandonada não desperte no futuro.
            Assim ele permanece contemplando o Dhamma nos dhammas internamente, ou permanece contemplando o Dhamma nos objetos mentais externamente, ou permanece contemplando o Dhamma nos objetos mentais tanto internamente como externamente.
            Permanece contemplando os fatores de originação nos dhammas, ou permanece contemplando os fatores de dissolução nos dhammas, ou permanece contemplando tanto os fatores de originação como os de dissolução nos dhammas.
            A plena atenção de que “existem apenas dhammas” se estabelece. A plena atenção se estabelece com a extensão necessária para se aprofundar o conhecimento e a plena atenção.
            Ele permanece não dependente em (ou apegado a) nada que diz respeito ao desejo e à visão errada.
            Nem ele se apega a nada do mundo dos cinco agregados do apego.
            Assim é como um bhikkhu permanece contemplando o Dhamma nos dhammas dos cinco obstáculos.

            Como praticar?

            “Ao sentar para meditar, à medida que o corpo e a mente relaxam, sente-se naturalmente sonolência. Quando isso acontecer, deve-se usar um dos métodos para vencê-la. Uma vez vencida a sonolência, deve-se focalizar a mente no objeto da meditação, digamos, a respiração. Ao focalizar a mente na respiração, conforme o obstáculo da sonolência se desfaz, a mente alcança aquilo que é chamado “momento inicial da focalização da mente na respiração sem sonolência”. Isso traz confiança, porque se vê algum resultado da prática.

A confiança ou fé manifesta-se quando se vê, sabe ou compreende algo que está acontecendo. Quando a confiança surge, a dúvida com relação à obtenção da plena atenção desaparece e então a mente permanece fixa no objeto por mais tempo, que é o que nos chamamos de “aplicação da mente”.

Também é possível que surja a inquietação e a preocupação. Deve-se usar então o método para eliminar ambas. Especialmente quando a mente está cheia de confiança e permanece fixa no objeto, a inquietação e a preocupação desaparecem. Quando elas desaparecem, surge a alegria, porque neste ponto a mente está assentada e relativamente calma. Então, a mente ainda focalizada na respiração apresenta o fator da alegria. Quando a alegria se instala, se desenvolve e cresce, qualquer ressentimento, raiva ou desapontamento que se possa ter desaparecerá. Quando o ressentimento se vai, ficamos felizes. Quando surge a felicidade, isso significa se está alcançando um nível no qual corpo e mente encontram-se mais calmos, mais tranqüilos e assentados. Como resultado, a cobiça, o apego e o desejo se dissolvem.

            Lembrem-se de que a felicidade que experimentamos neste ponto é a plenitude, o contentamento e que, dessa forma, a mente fica plena de contentamento e não precisa de mais nada a que agarrar, desejar ou prender-se. Nesse momento, a mente está completamente focalizada na respiração”. (4)

            Em um nível mais profundo, estão os grilhões, mais enraizados, com os quais temos de trabalhar progressivamente, para sua erradicação:

            “O meditador plenamente atento deve prestar atenção a como esses sentidos e objetos sensoriais se encontram e como surgem os grilhões. Quando surgem os grilhões, o meditador plenamente atento sabe: “Surgiu esse grilhão em especial”; quando esse grilhão desaparece, ele sabe: “Esse grilhão desapareceu”; quando este grilhão não retorna mais, ele sabe: “Esse grilhão se foi e não tornará a retornar”. E quais são os grilhões? Os grilhões são aqueles estados mentais que nos prendem à repetição do nascimento e morte. Eles são mais fortes e duradouros que os obstáculos e são em número de dez:
1.      Crença na existência de um eu
2.      Dúvida cética
3.      Apego a regras e rituais
4.      Forte desejo sensual
5.      Raiva
6.      Forte desejo pela existência material (rupa-raga)
7.      Forte desejo pela existência imaterial (arupa-raga)
8.      Orgulho
9.      Inquietação
10.  Ignorância
            Alguns desses grilhões e obstáculos se sobrepõem e fundem-se, misturam-se uns aos outros porque alguns grilhões também são obstáculos. Por exemplo: o prazer sensual, a dúvida, a raiva e a inquietação misturam-se. Os obstáculos são apenas cinco, enquanto os grilhões são dez.
            Como vocês sabem, os obstáculos atrapalham temporariamente, impedindo o progresso na obtenção de concentração. É por isso que são chamados obstáculos. Alguns desses obstáculos tornam-se grilhões; eles se tornam muito fortes, muito poderosos, como aço e pedra, prendendo-nos a este ciclo de nascimento e morte chamado samsara. Quando os obstáculos se transformam em grilhões tornam-se muito fortes e unem-se a outros grilhões para manter-nos fortemente atados ao samsara”.(5)
            Treinando a plena atenção e a concentração, contemplando os danos do sofrimento que esses grilhões criam para a saúde e libertação da mente, erradicamos pouco a pouco também esses grilhões; a erradicação progressiva desses grilhões permite que alcancemos estados mentais cada vez mais sublimes, até alcançarmos o estado mais elevado de arahant, aqueles perfeitamente libertados do samsara, para o qual não há mais retorno.


Notas

(1) O Abhidhamma Pitaka, com sete volumes, é uma das três Coleções, Cestas (Pitaka), que junto com o Vinaya Pitaka (Compendio de cinco ou seis volumes, das regras da disciplina para monges, monjas e leigos) e o Sutta Pitaka (Compêndio de cerca de trinta e três volumes dos ensinamentos do Buddha na forma de palestras/sermões (suttas), formam o Cânone budista Theravada (Tipitaka), na lingua Páli. Durante os 45 anos de ensinamentos, Buddha proferiu 84 mil sermões, o que daria cerca de 5 sermões em média por dia, entre sermões curtos, médios e longos. Sobre este tratado, veja: Bhikkhu Bodhi (ed). A Comprehensive Manual of Abhidhamma. The Abhidhammatha Sangaha of Acariya Anuruddha. Kandy, Sri Lanka: BPS, 1993.
(2) Para mais detalhes do significado de cada fator mental, veja Um Ensaio do Abhidhamma, II. Compendio dos Fatores Mentais. www.acessoaoinsight.net
(3) O termo dhammas, neste contexto, é traduzido por mestres budistas como objetos mentais ou atividades mentais. Optamos por manter a palavra dhamma (em páli), conforme o texto original do autor.
(4) Henepola Gunaratana, Bhante. Os Quatro Fundamentos da Plena Atenção. pg. 211-212. São Paulo: Edições Casa de Dharma, 2012.
(5) Henepola Gunaratana, Bhante. Os Quatro Fundamentos da Plena Atenção. pg. 151-152. Para mais detalhes sobre esses dez grilhões e sua superação, veja pgs. 152-161. São Paulo: Edições Casa de Dharma, 2012.



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 Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências e Saúde

9

Consciência e funções cerebrais:

Diálogos

a Ciência da mente, na perspectiva budista e as
 Neurociências

Arthur Shaker Fauzi Eid


Vimos que o avanço das técnicas científicas modernas de observação (electroencefalograma, a microestimulação elétrica do cérebro, tomografia por emissão de pósitrons, imagens funcionais por ressonância magnética) trouxe dados importantes para proposições de “mapas do cérebro”, interrelações entre áreas cerebrais e funções cognitivas. Localizacionismo e holismo parecem não ser visões excludentes, mas talvez complementares. Ainda assim, o tema da distribuição de funções cerebrais parece estar ainda em aberto.

Resumidamente: segundo Varela, durante os primeiros anos da cibernética, ocorreu prolongada discussão sobe a questão de que “nos cérebros reais não parece existir quaisquer tipos de regras, nem processadores lógicos centrais, nem a informação parece estar armazenada em localizações precisas. Ao contrário, os cérebros podem ser melhor vistos como operando com base em conexões massivas e distribuídas de maneira que as conexões efetivas entre grupos de neurônios mudam como resultado da experiência. (...) é preciso estudar os neurônios como partes de grandes conjuntos que desaparecem e surgem constantemente através de suas interações cooperativas, e nas quais cada neurônio tem respostas múltiplas e variáveis dependendo do contexto. (...) O cérebro é, assim, um sistema altamente cooperativo: as densas conexões entre seus componentes implicam no fato de que, eventualmente, tudo o que acontece será uma função do todos os componentes estão fazendo. Esse tipo de cooperação ocorre tanto local quanto globalmente: ela funciona dentro de subsistemas do cérebro, e também no nível das conexões entre esses subsistemas. Pode-se tomar o cérebro como um todo e dividi-lo em subseções, de acordo com os tipos de células a áreas, como o tálamo, o hipocampo, o giro cortical, etc. Essas subseções são formadas por redes complexas de células, mas também são inter-relacionadas em um sistema de rede. Como resultado, todo o sistema adquire uma coerência interna em padrões imbricados, mesmo que não possamos dizer exatamente como isso ocorre”. [Varela, Francisco J.; Thompson, Evan; Rosch, Eleanor, 2003, pgs. 99, 106-7]

A questão da arquitetura do cérebro, bem como sua relação com a mente, é um tema de grande complexidade. E dentro dessa tessitura cérebro-mente, qual o lugar da consciência na condição humana? A consciência estaria vinculada a uma área de função cerebral específica? (1)

A proposição de que a consciência seria apenas emanações subjetivas dos processos neurais tem merecido reflexões críticas a serem consideradas:
“Muitos estudos científicos indicam que os fenômenos mentais – tais como desejos, pensamentos, emoções e memórias experienciados subjetivamente – influenciam o funcionamento e comportamento do cérebro. Em resposta a essa evidência empírica, um número crescente de cientistas cognitivos conclui que os fenômenos mentais são reais, mas insiste que, a fim de interagir de modo causal com o cérebro, a mente deve ser física. Entretanto, os fenômenos mentais experienciados de forma subjetiva carecem de quaisquer características físicas e não podem ser detectados com nenhum dos instrumentos físicos de tecnologia, ainda que se tenha identificado que muitas funções cerebrais específicas contribuem causalmente para geração do processo mental.

Alguns cientistas e filósofos da mente imaginam as funções cerebrais como dotadas de uma identidade dual, tanto como processos físicos objetivos quanto como eventos mentais subjetivos. Mas não oferecem explicação sobre aquilo que no cérebro capacita-o a gerar, ou mesmo influenciar, eventos mentais, que dirá sobre o que permite processos neurais específicos assumirem essa identidade dual. Esse é o chamado “problema difícil”, que não foi resolvido desde que os cientistas começaram a estudar a mente. Os fenômenos mentais permanecem um enigma para os cientistas cognitivos tanto quanto o observador para os físicos modernos”. [Wallace, 2009, p.8-9]

Neste mesmo campo, na investigação do problema mente-corpo, a Neurobiologia tenta descobrir os chamados correlatos neurais da consciência (CNCs). Pontos críticos estão envolvidos nessa perspectiva:

“O fato de um conjunto de processos neurais ser necessário para a geração de uma experiência mental específica não exclui a possibilidade de que outros fatores não-neurais sejam precisos para a geração daquela experiência. Além disso, a identificação dos CNCs que são causas necessárias para uma experiência consciente específica em humanos não implica que também sejam necessárias ou suficientes para a geração de um evento mental similar em todos os outros primatas, que dirá em animais mais primitivos ou até mesmo plantas. A descoberta do CNC para um evento consciente específico pode ser relativamente direta quando o evento é expresso em comportamento ou relatado verbalmente. Mas determinar o CNC é altamente problemático quando não é esse o caso, como sucede com um embrião humano ou com uma pessoa em estado vegetativo. Além do mais, embora às vezes se diga que uma pessoa adormecida está inconsciente, temos ciência do conteúdo de nossos sonhos (e possivelmente do fato de que estamos sonhando), e até no sono sem sonhos existe um baixo nível de consciência e mesmo capacidade subliminal de discernir diferentes tipos de estimulação sensorial do ambiente físico”. [Wallace, 2009, p.38]

A perspectiva “naturalista” de tentar contornar as questões da consciência, propondo uma visão dual físico-objetiva e sensação subjetiva não-física para os processos neurais, esbarra com outro impasse:

“(...) Ninguém foi capaz de explicar o que em certos processos neurais (ainda não identificados) permite-lhes assumir essa misteriosa natureza dual – objetiva e subjetiva – e assim “realizar” fenômenos mentais. Isso é simplesmente uma reformulação do chamado problema difícil, para o qual não se divisou nenhuma solução convincente”. [Chalmers, 1996, citado em Wallace, 2009, p.40]

A hipótese da redução da consciência a uma atividade física-neural ainda é bastante dominante nas ciências cognitivas contemporâneas: “A despeito de muitas questões não resolvidas no que concerne à natureza e às origens da consciência, a grande maioria dos cientistas cognitivos e filósofos de hoje expressam confiança em que exista uma solução simples para o problema mente-corpo, e que ela esteve disponível a qualquer pessoa instruída desde que teve inicio a pesquisa séria sobre o cérebro há quase um século: os fenômenos mentais são causados por processos neurofisiológicos no cérebro e eles mesmos são características do cérebro (Searle, 1994, citado em Wallace, 2009, p.42).

Mas, antes que essa solução hipotética possa ser legitimamente validada, os correlatos neurais da consciência devem ser identificados, e devem se realizar testes para determinar se os CNCs são tanto necessários quanto suficientes para a experiência da consciência. Para estabelecer que eles são causalmente necessários, os cientistas têm que descobrir se um sujeito que tem os pretensos CNCs removidos perde a consciência em consequência disso. Para estabelecer que eles são causalmente suficientes, os cientistas têm que descobrir se um objeto de outro modo inconsciente pode ser trazido à consciência pela indução do pretenso CNC. Ninguém conseguiu ainda dar o primeiro passo, identificar o CNC”. [Searle, 2002, em Wallace, 2009, p.42].

Mantendo a mente aberta às novas pesquisas e dados sobre as áreas e possíveis correlatos neurais de processos mentais no cérebro, a questão é saber: esses dados vão corresponder a um conhecimento profundo da natureza da mente-consciência? Sobre o que é a mente? O que é a mente? O que é uma mente saudável? O que é saúde?

A perspectiva budista se encaminha para uma outra direção: se é verdade que a mente necessita do cérebro para se manifestar e operacionalizar funções, não significa que a mente seja equivalente ou sinônimo de cérebro. A mente é a fonte energética-luminosa que transmite-experiencia a luz-cognitividadade pela rede de fiação neural do cérebro (segundo processos complexos de uma rede de neuroplasticidade que permite ora aparecer distribuída em áreas localizadas, ora num campo fluido mutável não rigidamente localizável): sem o “transmissor-tradutor” cerebral, a mente não existiria como estado humano (e o inverso também é igualmente verdadeiro: sem a mente, o cérebro não existiria), mas a ressonância dos processos mentais nas redes neurais não torna o cérebro idêntico à mente.
As pesquisas neurofisiológicas têm trazido importantes contribuições para o entendimento do cérebro, e isto deve ser valorizado; mas ao mesmo tempo é preciso que se aponte os limites, distinções e dificuldades. O campo está aberto para a investigação científica, que inclua o valor de um dado central: a nossa experiência indica que o fundamento mais importante é a própria mente, como o instrumento mais poderoso para investigar a natureza da mente e da consciência. Neurocientistas e pesquisadores (F. Varela, A. Wallace, e outros) têm enfatizado um ponto fundamental: a importância de retrazer o lugar fundamental da perspectiva da mente a partir da experiência em primeira pessoa. (2)

A própria definição do que seja a consciência aparece segundo várias definições no campo da história da Filosofia, da Psicologia e das ciências cognitivas de modo geral. Na perspectiva da Ciência budista da mente, a consciência não é vista como um “algo” fixo, cuja variação seria apenas o de possuir maior ou menos densidade cognitiva. Constitui-se em um dos cinco agregados (pañcakhandha) que formam a condição humana; a forma material (rupa), e os agregados mentais (nama), estes por sua vez compostos de: sensação (vedana), percepção (sañña), formações mentais (sankhara) e consciência (citta). Por outro ângulo, a mente seria a consciência e seus fatores mentais, estes englobando os outros agregados mentais (sensação, percepção e formações mentais).

É importante compreendermos a noção de agregado (khandha). Nenhum deles possui uma essência fixa e imutável; são apenas processos em constante fluxo de transformação, processos impermanentes (anicca). O que chamamos (e nos referimos a nós mesmos) de “pessoa, homem, mulher” são denominações convencionais; de fato, teríamos apenas processos de condicionalidade, surgindo e desaparecendo incessantemente, segundo causas e condições. O corpo, as sensações, a percepção as formações mentais e a consciência estão em constante mudança. A consciência não é ima qualidade abstrata e fixa, ela também surge e desaparece momento a momento. Podemos dizer que a consciência é aquilo que conhece, ou percebe um objeto. É processo de cognição, conhecimento de um objeto.

Quando um órgão sensorial (ou melhor, a sensitividade ligada ao órgão sensorial) focaliza, através da atenção, o objeto sensorial correspondente, surge a consciência sensorial correspondente, e aí surge o contato. Órgão sensorial, objeto sensorial e consciência são os três fatores necessários para o contato e o surgimento da experiência cognitiva. Quando a visão focaliza um objeto visual, surge a consciência visual; da audição com o objeto sonoro surge a consciência auditiva e o contato; do olfato com o objeto olfativo surge a consciência olfativa e o contato; do gustativo com o objeto gustativo surge a consciência e o contato; do objeto tátil com o corpo surge a consciência tátil. A mente é considerada um sexto sentido: do contato da mente com os objetos mentais, surge a consciência mental.

A consciência surge momento a momento. Mas o quê experienciamos em cada momento da consciência? Experienciamos estados mentais carregados de conteúdo. Quais conteúdos? Conteúdos de acordo com os fatores mentais que surgem junto com os momentos de consciência. A consciência nunca surge pura, sem nenhum fator mental. É como tomar um chá ou um refrigerante. O chá é formado de água pura (consciência) e os conteúdos do chá (fatores mentais). O refrigerante é formado de água pura (consciência) e os corantes e açúcares (fatores mentais). Se os fatores mentais forem saudáveis, experienciamos estados mentais saudáveis; se forem não-saudáveis, experienciamos estados mentais não-saudáveis. E o quê são fatores saudáveis ou não-saudáveis? São os fatores destituídos (ou carregados) de cobiça, ódio e ignorância. E o que é ignorância (avijja)? É desconhecermos as três características (tilakhana) de todos os fenômenos do corpo e da mente: sua impermanência (anicca), insatisfatoriedade que leva ao sofrimento (dukkha), e a ausência de uma substância-essência imutável (anatta). Por não vermos essas três características, o desejo (tanhã) da nossa mente não treinada tenta se apegar nos objetos, pessoas, experiências agradáveis e rejeitar aversivamente os objetos, pessoas, experiências desagradáveis. Nublada pela ignorância sobre a verdade dessas três características, a mente vê de modo distorcido a realidade, e se envolve em ações não-saudáveis (ações do corpo, da fala e da mente), que trazem mais sofrimento, frustração, tristeza, lamentação, depressão, raiva. E continuamos indefinidamente nesse ciclo de nascer e morrer (samsara). Foram esses processos de originação do sofrimento físico e mental que o Buddha compreendeu pelo seu próprio treinamento de contemplação de sua própria mente. E purificando a mente em um longo processo de muitas vidas, alcançou a libertação e o cessamento do sofrimento e dos ciclos de renascimentos, alcançando e estado supremo de libertação e felicidade duradoura, Nibbana.

A compreensão das causas de nosso sofrimento físico e mental não requer acreditarmos (ou não) na figura do Buddha, nem nos exige qualquer vínculo religioso. Trata-se de analisar objetivamente as proposições sobre essas verdades e compararmos com nossa experiência pessoal. Por compaixão aos seres, o Buddha Gotama traduziu essa sabedoria profunda nas Quatro Nobres Verdades: a existência do sofrimento-insatisfatoriedade existencial (a Primeira Nobre Verdade); a causa do sofrimento (o desejo (tanhã) em suas três formas: desejo sensorial (kamatanhã), o desejo de ser-existir (bhavatanhã) e o desejo de não-existir (abhavatanhã), desejos estes que se manifestam na forma dos três venenos da cobiça, ódio e delusão (a Segunda Nobre Verdade); a possibilidade da extinção do sofrimento (Nibbana, a Terceira Nobre Verdade); e o caminho-método de treinamento para a superação do sofrimento (a Quarta Nobre Verdade – O Nobre Óctuplo Caminho).

Condicionados por esses três vírus mentais, percebemos de modo ignorante, ou superficial, a realidade pelo contato da mente com as seis portas dos sentidos, e reagimos de modo ignorante. E com isso prosseguimos reforçando, como a roda de uma carroça que vai acentuando os sulcos na estrada de terra; assim, os circuitos mentais de processos condicionados repetitivos e não saudáveis prosseguem trazendo novos sofrimentos.
Pesquisas científicas têm evidenciado essas tendências nos processos neurais: nossos modos de pensamento, fala e ação corporal repetitivos condicionam (de modo saudável ou não saudável) os padrões dos circuitos neurais do nosso cérebro (FSP, Folha de São Paulo: Saúde, C12, 30/01/2011; Begley, Sharon, 2008, entre outros).

E como podemos transformar nossos padrões ignorantes de agir, falar e pensar? Treinando a mente a ver e responder de modo progressivamente mais saudável, mais relaxado, mais sábio e compassivo. Cultivando momento a momento, minuto a minuto, dia a dia, uma mente de generosidade, de amorosidade, compaixão e sabedoria para conosco e os outros.

E como treinar a mente e o corpo nessa direção curativa? Pela prática do cultivo dos oito meios hábeis e saudáveis do Nobre Óctuplo Caminho: cultivamos uma ética saudável (sila) – fala correta, ação correta e modo de vida correto; com base em uma ética correta, criamos condições para tranqüilizar a mente, e isto apóia o cultivo da concentração saudável (samadhi) – o esforço correto, a plena atenção correta e concentração correta. Isto apóia e é apoiado pelo cultivo da sabedoria (pañña) – compreensão correta e pensamento correto. São como oito raios de uma roda, umas apoiando as outras, e girando no sentido oposto ao do sofrimento, girando no sentido da roda da libertação e felicidade duradoura, caminho rumo a Nibbana.

Treinando a mente e o corpo. Praticar, praticar, praticar. Esta é a função do treinamento da Meditação da Plena Atenção (mindfulness): o cultivo da concentração, (trazendo tranquilização e capacidade de unifocamento no corpo e mente, aquilo que experienciamos momento a momento); o cultivo da plena atenção (que lembra e traz a mente de volta ao foco quando a mente se distrái e vagueia), e o cultivo da sabedoria, (que investiga e libera a mente do apego, aversão e delusão sobre a verdade das três características da impermanência, insatisfatoriedade e insubstancialidade dos fenômenos existências do corpo e mente).

Como aplicar isto? Começando pela plena atenção ao agregado mais perceptível, o nosso corpo. Podemos usar a respiração, as posturas corporais, os elementos materiais, as partes do corpo, a contemplação dos mortos. Passamos aos agregados mentais: plena atenção às sensações (se são agradáveis, desagradáveis ou neutras). Este já é um nível mais sutil de investigação. Meditando, ficamos atentos às nossas percepções e preferências. E conseguindo certa base de concentração e plena atenção, podemos passar para a contemplação dos nossos pensamentos, crenças e estados de consciência momento a momento:

CONTEMPLAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

Bhikkhus, como um bhikkhu permanece contemplando a consciência na consciência?
Aqui, um bhikkhu reconhece a consciência com ganância como consciência com ganância; a consciência sem ganância como consciência sem ganância; a consciência com raiva como consciência com raiva, a consciência sem raiva como consciência sem raiva; a consciência com delusão como consciência com delusão; a consciência sem delusão como consciência sem delusão. Reconhece a consciência contraída como consciência contraída e a consciência distraída como consciência distraída. Reconhece a consciência transcendente como consciência transcendente e a consciência não-transcendente como consciência não-transcendente. Reconhece a consciência superável como consciência superável e a consciência insuperável como consciência insuperável. Reconhece a consciência concentrada como consciência concentrada e a consciência não-concentrada como consciência não-concentrada. Reconhece a consciência livre como consciência livre e a consciência não-livre como consciência não-livre.

Assim ele permanece contemplando a consciência na consciência internamente, ou permanece contemplando a consciência na consciência externamente, ou permanece contemplando a consciência na consciência tanto internamente como externamente.

Permanece contemplando na consciência os seus fatores de aparecimento, ou permanece contemplando na consciência os seus fatores de dissolução, ou permanece contemplando na consciência tanto os fatores de aparecimento como os de dissolução.

A plena atenção de que “existe apenas consciência” se estabelece. A plena atenção se estabelece apenas com a abrangência necessária para se aprofundar o conhecimento e a própria plena atenção.

Permanece despreendido de tudo que diz respeito ao apego e à visão errada. Não se apega a nada do mundo dos cinco agregados do apego.

Assim é como um bhikkhu permanece contemplando a consciência na consciência.

(Baseado no texto do Venerável U Silananda, The Four Foundations of Mindfulness, Boston, Wisdom, 2002).





Notas

(1) Shaker, Arthur - “A Consciência, as Neurociências e a Saúde – Contribuições da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)”, pgs. 32-36.

Referências

Begley, Sharon. Treine a mente, mude o cérebro. RJ: Objetiva, 2008.
Chalmers, David J. Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory. Nova York: Oxford University Press, 1996.
FSP, Folha de São Paulo: Saúde, C12, 30/01/2011.
Searle, John R. The Rediscovery of the Mind. Cambridge, MA: MIT Press, 1994.
_____________ Consciousness and Language. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
U Silananda, Sayadaw. The Four Foundations of Mindfulness. Boston: Wisdom Publications, 2002.
Varela, Francisco J.; Thompson, Evan; Rosch, Eleanor. A mente Incorporada.
Ciências Cognitivas e Experiências Humana. Porto Alegre: Artmed Editora 2003.

Wallace, Alan. Dimensões Escondidas. A unificação da Física e Consciência. SP: Peirópolis, 2009.



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 Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências e Saúde

8

Cérebro e Mente

Arthur Shaker Fauzi Eid



Um rico campo da área científica contemporânea tem se aberto a partir das chamadas Neurociências, que englobam várias sub-áreas do estudo do cérebro e comportamento: a Neuroanatomia (estudo da anatomia do sistema nervoso), Neurobiologia (biologia do sistema nervoso ou suas partes), Neuroendocrinologia (interação sistema nervoso-glândulas endócrinas), Neurofarmacologia (ação das drogas no sistema nervoso), Neurofisiologia (funções do sistema nervoso), Neurogenética (fatores genéticos nos distúrbios neurológicos), Neurologia (ciência médica do sistema nervoso e seus distúrbios), Neuropatologia (doenças do sistema nervoso), Neuropsicologia (sistema nervoso e funções cerebrais ou mentais), Neuropsiquiatria (distúrbios neurológicos e psiquiátricos), Neuroquímica (composição química e dos processos do sistema nervoso e efeitos de substancias químicas sobre ele), Neuroradiologia (uso de raios X no diagnóstico e tratamento de distúrbios do sistema nervoso) [Herculano-Houzel, 2008, p.3].

Há uma longa história do desenvolvimento das proposições sobre o funcionamento do cérebro: dos egípcios, com a dissecação de cadáveres, passando pelo médico romano Galeno (séc. III d.C.), o médico persa Avicena (séc.XI d.C.), Vesalius, René Descartes, Thomas Willis, Franz Gall, Pierre Flourens, Paul Broca, chegando até o histologista Santiago Ramón y Cajal (séc. XIX-XX d.C.), encontramos sucessivos passos de investigações e teorias, girando em torno de uma polaridade entre uma visão holista (o sistema nervoso como uma teia única de células nervosas - a chamada “teoria reticular”) e uma visão localizacionista (o cérebro como um conjunto de unidades celulares discretas, especializadas segundo a região cerebral).

O avanço de técnicas de observação abriu novas proposições: o estudo das oscilações elétricas do cérebro trouxe o electroencefalograma (as ondas alfa, beta, gama, delta); a microestimulação elétrica do cérebro possibilitou identificar correlações entre áreas e funções cerebrais e a relevância do córtex cerebral e da formação reticular do mesencéfalo nos processos mentais humanos. Técnicas de visualização buscaram apreender a relação entre as atividades cerebrais e o seu metabolismo, através da medição do consumo de oxigênio e glicose pelos neurônios em vários processos de atividade cerebral, como no repouso ou em cálculos mentais complexos. O surgimento da tomografia por emissão de pósitrons, que iria permitir perceber concentrações de glicose radioativa em áreas mais ativas do cérebro, e posteriormente a técnica das imagens funcionais por ressonância magnética, abriu dados para novas percepções sobre certas relações entre áreas cerebrais e funções cognitivas, o que reforçaria a visão localizacionista, mas também a interconexão de várias áreas do córtex operando em conjunto, o que apontaria para uma visão holística do funcionamento do cérebro. [Herculano-Houzel, 2008, p.15].

O que se denominou comumente de “cérebro” envolve, de fato, uma realidade mais ampla e complexa, o Sistema Nervoso: de modo sintético e simplificado, o Sistema Nervoso pode ser assim descrito:

I. Sistema Nervoso Central (SNC), composto de:

1. Encéfalo, por sua vez composto de: 1.1. Cérebro: parte mais desenvolvida, centro de inteligência e aprendizado, mapeada em 40 funções-áreas diferentes, em seus hemisférios unidos por um corpo caloso. No córtex cerebral (pensamento e planejamento), os 4 lobos tendo por funções:


Lobo Frontal: funções motoras, expressão lingüística, memória, planejamento-comportamento.
Lobo Occipital: visão.
Lobo Parietal: imagem, sensibilidade corporal e espacialidade.
Lobo Temporal: audição, visão elaborada.

1.2. Sistema Límbico (cérebro emocional)

Hipocampo – armazenamento de memórias
Hipotálamo – modulador e mediador entre o Sistema Nervoso e o Sistema Endócrino.
Amígdala – “portão” para o emocional.
Tálamo – retransmissor das informações sensoriais até o manto cortical.

1.3. Tronco Encefálico

Cerebelo – coordenação de movimentos e postura corporal.
Ponte – área de entroncamento.
Medula Oblonga (Bulbo) – regulação de funções críticas (pressão sanguínea, batimento cardíaco e respiratório).

2. Medula Espinal – atos reflexos.

II. Sistema Nervoso Periférico (SNP)

Transmite informações entre o Encéfalo e o corpo.

1. Sistema Nervoso Periférico Voluntário (SNPV) – reação aos estímulos do meio externo.
2. Sistema Nervoso Periférico Autônomo (SNPA) – regula o ambiente interno.
• Simpático – mobiliza energias.
• Parassimpático – atividades relaxantes.

[Amabis & Martho, 1998; Ramachandram, 2004; O Livro do Cérebro, 1, 2009]

A questão científica central é: o órgão físico “cérebro” é sinônimo da “mente”? Não há um consenso sobre isso. Esta questão se desdobra em várias: como a mente se relaciona com o cérebro? É possível, através de aparelhos de registros, detectar essas relações? E como isto se traduziria em aplicações benéficas aos seres humanos? O problema não é apenas terminológico, mas tem a ver com as perspectivas com que se entende essa realidade humana fundamental, pois se trata do “centro nervoso” de funcionamento do corpo e das atividades psíquicas, e mais fundamental, das atividades que se referem ao caminho de libertação espiritual humana. De acordo com qual perspectiva cognitiva se tome, decorrem proposições e terapêuticas, com consequências em todas as áreas existenciais dos seres humanos. E intimamente ligada à questão cérebro-mente, está a questão da consciência.

Muitas das interpretações das Neurociências tendem a considerar a mente (ou a consciência) como emanações subjetivas dos processos neurais. Assim, apóiam-se na suposição de que o progresso das pesquisas científicas esclarecerá os correlatos neurais da consciência, absorvendo as ciências da mente como capítulos específicos do estudo do cérebro.

Esta proposição de “naturalizar” toda realidade existencial como campos de atividade da “matéria” não é nova; ela acompanha o processo de construção das chamadas Ciências Modernas, onde a Física e a Biologia ocupam lugar de destaque. A questão é saber se os ganhos materiais desse processo não acarretaram reducionismos, perdas cognitivas e perdas de horizontes para a humanidade.

A própria noção de “matéria” como instância “objetiva” última que explicaria a realidade existencial tem merecido revisões e críticas pela Física Quântica:

“Nossa realidade apresenta uma natureza dualística: a matéria que compõe o que experienciamos existe tanto como onda, ou não-materialidade, quanto como partícula, ou materialidade. Essa forma de ondas que as partículas exibem não tem uma localização definida no espaço-tempo, ela só pode ser entendida como estando em todos os lugares ao mesmo tempo, espalhada por todo o Universo. (...) Ao mesmo tempo, como partícula, um “objeto” existe num local definido no espaço-tempo.

E como algo que parece ter uma localização definida no espaço-tempo, também é capaz de existir espalhado por uma grande região espacial? Por mais surpreendente que isso possa parecer, o experimento que confirma isso foi repetido milhares de vezes com o mesmo resultado, e o que surgiu primeiro como um choque entre os físicos, inevitavelmente tornou-se um fato bem conhecido e aceito.

A coisa que determina se as partículas se comportam como onda ou partícula acabou sendo descoberta como a própria coisa que observa este fenômeno: a consciência humana. A qualidade de uma partícula não é predeterminada, mas definida pela própria mente que a percebe. Então, o que parece ser realidade sólida é na verdade apenas um lado de dois aspectos da realidade nublados entre si: aquele da onda e aquele da partícula”. Em suma: “A realidade não existe sem a mente que a define. Sem a mente, a realidade existe apenas como potencial infinito”. [Gerald P, 1983] (1)




Notas

(1) Conforme texto mais amplo, Arthur Shaker: “A Consciência, as Neurociências e a Saúde – Contribuições da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)”, apresentado no II Simpósio Internacional sobre Consciência, 2011, e publicado em A Consciência – A incógnita da equação humana, pgs. 25-42. Salvador: Organização Científica de Estudos Materiais, Naturais e Espirituais, 2011, www.ocidemnte.com.br


Referências

Amabis, J. Mariano; Martho, Gilberto R. Biologia dos organismos. Vol. 2. SP: Editora Moderna, 1998.
Gerald P. Onde a Ciência e o Budismo se encontram. Legendado por Joe the Eagle. www.youtube.com/watch?=MqtxbwUrnvI&feature=related
Herculano-Houzel, Suzana. Uma Breve História da relação entre o Cérebro e a mente. em Neurociência da Mente e do Comportamento, Lent, Roberto. (coord). RJ: Guanabara Koogan, 2008.
O Livro do Cérebro, 1, Funções e anatomia,  SP: Duetto, 2009
Ramachandram, V.S., Blakeslee, Sandra. Fantasmas no Cérebro: uma investigação dos mistérios da mente humana. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2004


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 Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências e Saúde

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A Plena Atenção, a Percepção Sensorial e as Sensações

Arthur Shaker Fauzi Eid

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Como se dá o processo sensorial através do qual percebemos a realidade? Quais suas bases neurofisiológicas? Como são produzidas as sensações? Como as sensações condicionam nossas reações a elas? E como o treinamento da Plena Atenção pode intervir de modo propício nesses processos?

Do ponto de vista das bases neurofisiológicas da percepção sensorial, temos quatro tipos principais de receptores sensoriais, segundo o estímulo captado: os quimioreceptores (captadores de substancias químicas no nariz e língua); os termoreceptores (para estímulos térmicos, pela pele); mecanoreceptores (estímulos mecânicos, como a compressão ou estiramentos – sob a forma de fonoreceptores, detectores de variações de pressão no ar, e estatoreceptores, detectores da posição do corpo na força da gravidade, como o exemplo do ouvido); e os fotoreceptores (captadores de estímulos luminosos). [Amabis & Martho, p. 487-88]

O processo perceptivo inicia-se pela captação de um estímulo: “um estímulo altera a permeabilidade da membrana plasmática da célula sensorial, nela gerando potenciais de ação, que se transmitem na forma de impulsos nervosos” [Amabis & Martho, p. 488]. Estes impulsos são transmitidos às áreas cerebrais afins, que interpretam os impulsos. Em outras palavras, no encontro dos objetos sensoriais com os órgãos dos sentidos, surge a consciência. Devido ao encontro entre o órgão sensorial e consciência, surge o contato (phassa) e a consciência correspondente: objeto visual/consciência visual; objeto sonoro/consciência auditiva; objeto olfativo/consciência olfativa; objeto gustativo/consciência gustativa; objeto tátil/consciência corporal. E ainda inclui-se, nos ensinamentos budistas, os objetos mentais (pensamentos, memórias, imagens)/consciência mental, pois a mente é considerada um sexto sentido.

O processo cognitivo de um objeto passa por várias etapas: por exemplo, se o objeto sensorial é uma árvore, em uma série de momentos de consciência a mente compõe uma imagem progressiva com a totalidade de dados visíveis, e o que vemos é apenas um objeto-dado visível (conceito coisa). Em seguida, a consciência busca na memória do passado referências de similitude com os dados visíveis, para depois nomeá-la: árvore (conceito nome). Segundo o Ven. Silananda, para dizermos “vejo uma árvore”, uma série de processos cognitivos são necessários, cada um deles pode surgir talvez milhares de vezes (Ven. Silananda, 2003, p. 231). Veremos mais adiante que a consciência sensorial surge e desaparece momento a momento, junto com o surgimento e desaparecimento do contato com o objeto sensorial correspondente. Neste ponto, podemos levantar uma questão científica importante: são as áreas específicas do cérebro que interpretam e significam os impulsos nervosos, ou é a mente que, através dos suportes das áreas específicas do cérebro, percebe e significa os dados sensíveis? Esta questão específica se situa, de fato, dentro das atuais investigações neurocientíficas das relações cérebro-mente. Questão em aberto.

De todo modo, fato é que no momento do contato, vibrações surgem e são conduzidas pelos nervos até o Sistema Nervoso Central, onde estes sinais serão interpretados: “a percepção (sañña) é que torna essa vibração um objeto individual, como os pontos individuais de um desenho infantil. A percepção é que liga os pontos para formar uma imagem, uma figura. Quando os pontos se ligam, a figura fica colocada na página e damos o nome. Embora o nome não seja necessário, quando o objeto fica separado dos outros em sua volta, isso é a percepção, que faz a diferenciação das formas/figuras em realidades individuais. Se não houvesse percepção na mente, veríamos um labirinto de várias cores de uma dimensão”. (Bhante Rahula, 11/03/2011, retiro 2011, Casa de Dharma. Anotações).

Aqui tende a surgir novos problemas. Sucede que a percepção, como um dos cinco agregados (khandhas), é condicionada por múltiplos fatores: estresse, passado/futuro, emoções, pensamentos e reatividades. Percepções condicionadas criam opiniões, e reagimos de acordo com nossas opiniões formadas, carregadas de apego ou aversão: “Desde que nascemos, formamos percepções na mente. Dependendo de nossa formação, criamos nossa opinião sobre essas percepções. A percepção apenas surge como reação a uma sensação (vedana). Se a sensação do objeto é desagradável, o objeto da percepção será visto como desagradável (o mesmo valendo, inversamente, para o objeto prazeroso). Padrões reativos se fixam na mente, mesmo que as coisas não sejam ruins em si. As percepções podem ter sido criadas em vidas passadas. Pensamos que queremos (ou não queremos) um objeto, mas o que queremos é a sensação que o objeto nos traz. O objeto não é tão importante, o que queremos/não queremos é a sensação prazerosa (ou rejeitar a sensação desprazerosa). Pois se o objeto parar de produzir aquela sensação prazerosa, não queremos mais aquele objeto (ou aquela pessoa). Devido à impermanência das sensações, mudamos nossas preferências” (Bhante Rahula, 2011).

As sensações fazem parte dos quatro agregados mentais (nama): sensação (vedana), percepção (sañña), formações mentais (sankhara, que inclui pensamentos, emoções, memórias, reações) e consciência (viññana). Junto com o agregado do corpo (rupa), formam os cinco agregados (pañcakkhandha), que convencionalmente chamamos de “pessoa”. Toda a questão do sofrimento advém de nossa identificação com os cinco agregados, e por isso se tornam os Cinco Agregados do Apego. Identificamo-nos com eles, como sendo “meu corpo”, “minhas sensações”, “minha percepção”, “meus pensamentos”, “minha consciência”. E geramos um senso de “eu”, nos identificamos com esse senso de identidade, nos apegamos a essa noção, e reagimos com aversão a tudo que ameaça a pseudo estabilidade e segurança desse “eu”. E sofremos. Por quê? Porque nos identificamos com esses cinco agregados que são insatisfatórios. E por que são insatisfatórios? Porque são impermanentes. Nossos desejos de permanência se conflitam incessantemente com a lei da impermanência, que segue na direção oposta de nossos desejos.
Todo o treinamento da Plena Atenção é investigarmos o funcionamento desses cinco agregados em nossa vida diária: como nos relacionamos com nosso corpo? Com apego? Com aversão? Com indiferença? Como nos relacionamos com nossas sensações, percepção, pensamentos, consciência? Compreendendo, cuidando e não se identificando com eles, liberamos gradualmente a mente do apego a eles. E como isso se dá, do ponto de vista prático, com as sensações, que se ligam às nossas percepções, na maioria das vezes distorcidas?

Temos três tipos de sensações: agradável corporal (sukha) – agradável mental (somanassa); desagradável corporal (dukkha) – desagradável mental (domanassa); e indiferente ou neutra (upekkha). De acordo a cada sentido, teremos seis tipos de sensações a eles associadas, ou surgidas através deles.
Examinemos primeiramente a sensação da dor. A dor é uma sensação desagradável, diante da qual nossos padrões mentais condicionados se esforçam por rejeitá-la com aversão. Não queremos a experiência da dor, queremos afastá-la de nós.

Como se processa a Neurofisiologia? Através das fibras nervosas transmissoras, estímulos são conduzidos pela medula até o Bulbo. Aqui, reações corporais quase automáticas são produzidas pelo Sistema Nervoso Autônomo: aumento da pressão arterial, dos batimentos cardíacos, mudanças na respiração, sudorese. Os estímulos prosseguem para a região central do Tálamo, a estação retransmissora para a área da Amígdala, o portão para o Sistema Límbico, responsável pelas emoções.

Do Tálamo são enviadas para áreas superiores do córtex cerebral, envolvidas na atenção e significação, onde esses estímulos serão interpretados como sensações. O córtex somatossensorial e o córtex insular (a dobra profunda que divide os lobos temporal e frontal) permitem ao cérebro saber em qual parte do corpo a dor se origina; a parte anterior do córtex cingulado (ACC) gera o significado emocional da dor e a gravidade da lesão. Outras áreas também estariam ligadas a este processo: os córtices motor e motor suplementar (responsáveis pelo planejamento e execução do movimento; no caso, escapar dos estímulos dolorosos); o córtex parietal (volta a atenção para a ameaça), e o córtex frontal (significado da dor e o que fazer com isso) [‘O Livro do Cérebro’, 2, p. 112-115].

Este processamento, entretanto, não é rígido. Certos fatores mentais podem intervir na modulação da sensação, na percepção e resposta a esses estímulos dolorosos. De acordo com as observações científicas, as áreas cerebrais superiores podem enviar sinais nervosos que diminuam ou interrompam os sinais da dor, reduzindo a extensão da sensação dolorosa (“Meditação e a Dor”, em A Meditação e a Ciência, www.acessoaoinsight.net).

Aqui está presente um fator importante: a atenção. O córtex cingulado está envolvido no quanto de atenção é dada ao estímulo nervoso. Segundo as referências científicas acima citadas, há formas diversas, com efeitos opostos, no lidar com a dor, o chamado efeito placebo e nocebo. Trazendo a Plena Atenção e a Sabedoria diante da sensação dolorosa, diminuindo a resistência e barreira entre o “eu” e “a dor”, permitimos que ela se manifeste, não nos identificamos como sendo a “minha dor”, mas apenas como uma sensação desagradável, que tenderá a passar, por ser impermanente. Evitamos que a mente crie conceitualizações e cenários mentais trágicos, que desencadeiam reações emocionais aflitivas, pensamentos negativos, ansiedade, pois estes ativam o sistema de reatividade na Amígdala, que por sua vez incita o cérebro de modo semelhante à experiência da dor. Resultado: intensificação da dor, sofrimento. [“O Livro do Cérebro” 2, p. 112-115; Bhante Gunaratana, 2002, p. 102-105]. A dor é dada, o sofrimento é opcional. Ou, segundo a didática fórmula apresentada pelo monge Bhante Rahula, S = d x r (Sofrimento é igual à dor vezes a resistência a ela). Se a dor é 5 e a reatividade é 10, experienciamos 50 de sofrimento. Se a dor é 100 e a reatividade é zero, o sofrimento é zero. Ou seja, sofrimento não é sinônimo de dor. Sofrimento é a reação à dor (dada). Podemos evitar até certo ponto condições que criem a dor, mas não podemos eliminá-la: tendo corpo há dor, em graus e circunstâncias variáveis. Mas o sofrimento, podemos superá-lo, com a Plena Atenção e a Sabedoria. Vendo a dor apenas como sensação, apenas como simples energia, vibração, ainda que desagradável, mas como impermanência (anicca), insatisfatoriedade (dukkha) e impessoalidade (anatta). Nenhum sujeito, apenas os cinco agregados, sem nenhum “eu-meu-mim”.

O controle consciente pela Plena Atenção não significa repressão a este processo sensorial, nem desviar a atenção ou distraí-la através de uma realidade virtual. Não é que a atenção desviada ou distraída (experiência pela qual se procura deixar menos atenção para o processamento cerebral dos sinais dolorosos) seja negativa em si, muitas vezes até podemos fazer uso desse expediente. Mas como hábito tem eficácia circunstancial, pois os padrões mentais de reatividade permanecem inalterados. A Plena Atenção e a Sabedoria atuam pelo relaxamento, aceitação, investigação e não-identificação, que com isso atuam mais profundamente nos padrões de processamento do córtex, diminuindo os estímulos nessa área, aumentando a tolerância e resistência à dor, e abrindo portas para a compreensão da natureza frágil da existência condicionada e a libertação da mente. Mas lembremos: são processos de treinamento gradual e o bom senso e adequação progressiva aos nossos limites são fundamentais.

A experiência do prazer é o outro lado da moeda sensorial: queremos os prazeres sensoriais, investimos muito esforço para conseguí-los; quando conseguimos nos apegamos e não queremos que terminem. Como se processa nossa relação entre desejo e recompensa? Para muitos de nós, a felicidade é vista (e buscada) como sinônimo de maximização das experiências prazerosas, agradáveis. E há toda uma ideologia atual para induzir em nossa mente esse modelo: compre, consuma, sacie seus desejos, isto é felicidade, realização. Há profissionais altamente treinados em vender desejos.
Do ponto de vista neurofisiológico, tudo começa com o estímulo. O desejo é visto segundo dois ângulos: o querer (seria uma necessidade real) e o gostar (obtenção do prazer). Já neste início podemos ver, nesta dupla face do desejo, que “necessidade” não obrigatoriamente é sinônimo de “prazer”, mas também que “necessidade” não precisa obrigatoriamente rejeitar o prazer decorrente. A questão é: com qual critério de prioridade nos relacionamos com os objetos? Veja que essa pergunta importante já é um treinamento de Plena Atenção, e tem na sua base outra pergunta fundamental: qual é o modelo de felicidade que temos? Esse modelo é baseado na ignorância sobre a natureza impermanente das coisas, e que nos trará sofrimento, ou é baseado na sabedoria que conduz à felicidade duradoura?

O estímulo pode ser provocado por vários fatores: uma necessidade real (por ex. a necessidade de se alimentar gera estímulo cerebral para a busca de alimentos), ou um desejo provocado por contato com um objeto agradável que nos traga prazer, ou por queda de glicose, carência afetiva, buscas de compensação diante de perdas, frustrações, etc. O estímulo envolve uma antecipação, uma expectativa de recompensa; esta por sua vez é condicionada pelo tipo de aprendizado e memória que temos sobre experiências anteriores. E aprendizado e memória por sua vez são condicionados pelo grau de ignorância (moha) ou sabedoria enraizada em nossa mente. Tendemos a não ter uma visão clara dos elos desse processo que se move muito rápido em nosso corpo e mente.

O estímulo desencadeia a necessidade, o desejo, que é notificado pelo sistema límbico. O desejo é registrado como desejo consciente no córtex cerebral, que orienta o corpo a agir para a realização do desejo. Sob orientação do córtex cerebral, ações corporais são desencadeadas, e as ações retornam sinais ao sistema límbico, que libera neurotransmissores semelhantes a opióides: “A expectativa de recompensa aumenta o fluxo de sangue cerebral na amígdala e no córtex órbito-frontal, indicando atividade no núcleo accumbens (que libera dopamina) e no hipotálamo (rico em receptores de dopamina)... neurotransmissores elevam os níveis de dopamina em circulação, gerando sensação de satisfação” (“O Livro do Cérebro”, 2, p. 136).

Se a questão da busca do prazer ficasse apenas nesse nível, qual o problema, poderíamos nos perguntar? Tenho necessidade, conjugo com o prazer, vou em busca, consigo, experiencio satisfação, fico feliz. Mas o problema não pára aí. Pelo fato das sensações serem impermanentes, a sensação prazerosa é seguida pela experiência da sensação desagradável, a falta, a insatisfatoriedade. Ao apego segue-se a aversão e seus irritantes psíquicos. A questão do desejo-recompensa-felicidade é o cerne dos ensinamentos do Buddha, pois é em torno do desejo que está o problema da existência. Nossa mente condicionada não vê, e não quer ver, as duas faces da correlação entre desejo sensorial e felicidade. Só vemos o lado gratificante (assada). Qualquer coisa que tente interferir em nosso modelo desejo=felicidade, é vista e rejeitada como moralismo, repressão, obscurantismo, invasão dos nossos direitos à felicidade = prazeres maximizados. Corremos atrás dos desejos sensoriais, algumas vezes conseguimos experienciar alguns prazeres, mas eles se vão, e nos vemos novamente diante dessa sede insaciável, tanhã. Não vemos esse lado ardiloso (adinava) que nos aprisiona, o anzol escondido na isca. Por isso o Buddha associa essa sede com o fogo, uma queimação na mente. O fogo queima, consome, transforma tudo em cinzas, e busca novos combustíveis, nos empurrando atrás de novos objetos e pessoas que nos sejam fontes dessa experiência. Como o burro que corre atrás da cana de açúcar amarrada à sua frente e nunca alcança, e no final cai morto de exaustão e fome.

Em um importante sutta chamado Magandiya Sutta, do Majjhima Nikaya (MN 75), Buddha dialoga com o filósofo Magandiya, defensor do hedonismo, filosofia que pensa o significado da vida como busca do prazer. Nesse sutta, Buddha procura mostrar para Magandiya que a questão não é os prazeres sensuais em si, mas a ânsia e o apego a eles, mantendo a mente prisioneira dessa forma de satisfação, qual uma febre, uma drogadicção, com todos os sofrimentos decorrentes dessas dependências, não apenas mentais, mas também químicas, corporais. Buddha usa didàticamente símiles drásticos, com o da aflição da lepra, para trazer o conhecimento sobre a natureza ilusória desses apegos. Não é que o Buddha ignorasse a satisfação que os prazeres sensuais trazem, pois se não trouxesse alguma satisfação, quem empenharia esforços em consegui-los? A questão é que são impermanentes, e por isso mantêm a insaciedade intacta em seu nível mais profundo, e reforçam o padrão de apego e sofrimento.

Quando tocamos nesse ponto, é frequente surgir na mente a pergunta: mas sem a busca do prazer sensorial, que sentido restaria para a vida? Como é possível viver sem desejos? A vida não seria com isso insossa, deprimida? Por debaixo desse receio, compreensível até certo ponto, está outra visão equivocada, gerada pelo apego e ignorância: até hoje, tudo que entendemos como felicidade é isso: felicidade é sinônimo de busca de prazer sensual. Portanto, só existiria isto. É como se passássemos nossa vida num deserto, comendo cactus, e achando isso a fina iguaria. Então alguém chega e nos diz:
Êi! Há um oásis ali diante, com água cristalina, sombra e frutas sublimes. Vá lá, veja por si mesmo!

Buddha mostra que há outros níveis mais sutis de deleite que podem ser alcançados, em direção à felicidade duradoura, Nibbana:

“Suponha, Magandiya, que houvesse um leproso, com feridas e bolhas no seu corpo, sendo devorado por vermes, coçando com as unhas as crostas abertas de suas feridas, cauterizando seu corpo com pedaços de carvão em brasa. Então seus amigos e companheiros, e seus parentes, trouxessem um médico para lhe tratar. E médico faria um remédio para ele, e através disso o homem ficaria curado da lepra, e ficaria bem e feliz, independente, mestre de si mesmo, podendo ir aonde quisesse. Então ele visse outro leproso com feridas e bolhas nos seu corpo, sendo devorado por vermes, coçando com as unhas as crostas abertas de suas feridas, cauterizando seu corpo com pedaços de carvão em brasa. O que você pensa, Magandiya? Aquele homem teria inveja daquele leproso pelo uso do carvão em brasa ou de seu remédio?

Não, Mestre Gotama. Porque isto? Por que quando há doença, um remédio precisa ser feito, e quando não há doença, o remédio não precisa ser feito”.

Buddha mostra que ele também, quando ainda vivia a vida familiar, deleitava-se nos prazeres sensuais, mas que depois, tendo compreendido como realmente era a origem, o desaparecimento, a gratificação, o perigo e a possibilidade do escape dos prazeres sensoriais, abandona essa ânsia por eles, conseguindo a paz interior. E que ele não invejava aqueles que ardiam na busca desses prazeres sensoriais, pois que ele encontrara um deleite que está para além desses prazeres, para além desses estados não saudáveis, que ultrapassa inclusive os deleites celestes (MN 75, 11-13, 2004, p. 610-611).

As sensações prazerosas materiais têm subjacente a tendência do apego, as desagradáveis materiais têm subjacente a tendência à aversão, e as neutras-indiferentes têm subjacente a tendência à confusão ou cobiça sutil. Mas há também as sensações não materiais, espirituais. Assim, as sensações espirituais prazerosas podem provir do deleite (piti), alegria (sukha), paz (khanti), trazidas pela concentração ou devoção. As sensações espirituais desagradáveis podem provir de percepções de que nossa prática ainda enfrenta certos obstáculos em seu progresso, exigindo de nós revermos a prática e perseverar. As sensações espirituais neutras se referem aos estados de equanimidade mental (upekkha), o que é bem diferente da indiferença, expressão da ignorância e insensibilidade fria diante da realidade e do sofrimento dos outros. A equanimidade, pelo contrário, é um estado de equilíbrio, uma das mais altas virtudes, pela qual nos sensibilizamos com o sofrimento; podemos agir com compaixão e sabedoria, mas sem sermos arrastados no sofrimento, nosso ou dos outros. Seria como a atitude equilibrada do guarda-vidas, atento aos descuidos dos banhistas, orientando-os, alertando-os, socorrendo-os quando necessário, mas sem se afundar no debater-se daqueles que ele socorre.

Trazendo agora para o nível prático: colocamos a Plena Atenção no foco de nossa respiração, e procuramos perceber em nosso corpo e mente quando surge alguma sensação, se é agradável, desagradável ou neutra, que estados mentais acompanham essas sensações: Apego? Aversão? Indiferença? Com plena atenção e sabedoria percebemos o surgimento na mente dessa busca de experienciação das sensações agradáveis, e o que fazem em nosso corpo e mente. Com plena atenção e sabedoria percebemos o seu desaparecimento, e o que acontece em nosso corpo e mente em seguida. Uma das formas de treinamento para lidar e superar o forte apego aos prazeres sensuais é a contemplação das impurezas do corpo, através da contemplação das partes do corpo, ensinada pelo Buddha no Satipatthana sutta, em que aprendemos a visualizar e contemplar cada uma das partes do corpo, em sua forma, cor, localização e sua natureza impermanente:

Reflexão sobre as Impurezas do Corpo

“Novamente, bhikkhus, um bhikkhu reflete sobre esse mesmo corpo de baixo para cima a partir da sola dos pés, e de cima para baixo a partir do topo da cabeça, limitado pela pele e repleto de diversas impurezas assim:
Existe neste corpo:

Cabelo, pêlo do corpo, unhas, dentes e pele;
Carne, tendões, ossos, medula e rins;
Coração, fígado, diafragma, baço e pulmões;
Estômago, intestino, peritônio, fezes e cérebro;
Bile, catarro, pus, sangue, suor e gordura;
Lágrima, linfa, saliva, muco, gordura das juntas e urina.

Como se houvesse um saco com abertura dupla, cheio de vários tipos de grãos, tais como arroz, arroz com terra, arroz com casca, palha de arroz, ervilha, gergelim, e um homem com boa visão o abrisse e examinasse e dissesse: “Isto é arroz, isto é arroz com terra, isto é arroz com casca, isto é palha de arroz, isto é ervilha, isto é gergelim”. Da mesma forma, bhikkhus, um bhikkhu reflete sobre seu corpo, de baixo para cima a partir da sola dos pés, de cima para baixo a partir do topo da cabeça, limitado pela pele e repleto de diversas impurezas: “Existem nesse corpo cabelo, pêlo do corpo, unhas, dentes e pele; carne, tendões, ossos, medula e rins; coração, fígado, diafragma, baço e pulmões; estômago, intestino, peritônio, fezes e cérebro; bile, catarro, pus, sangue, suor e gordura; lágrima, linfa, saliva, muco, gordura das juntas e urina.
Assim ele permanece contemplando o corpo no corpo internamente, ou permanece contemplando o corpo no corpo externamente, ou permanece contemplando o corpo no corpo tanto internamente como externamente.
Permanece contemplando no corpo os seus fatores de aparecimento, ou permanece contemplando no corpo os seus fatores de dissolução, ou permanece contemplando no corpo tanto os fatores de aparecimento como os de dissolução.
A plena atenção de que “existe apenas o corpo” se estabelece. A plena atenção se estabelece apenas com a abrangência necessária para se aprofundar o conhecimento e a própria plena atenção.
Permanece despreendido de tudo que diz respeito ao apego e à visão errada. Não se apega a nada do mundo dos cinco agregados do apego.
Assim é como um bhikkhu permanece contemplando o corpo no corpo”.
(Baseado no texto do Venerável U Silananda,
The Four Foundations of Mindfulness, Boston, Wisdom, 2002).

Investigamos quais sensações e desejos são inábeis, quais nos prendem ao ciclo do samsara e do sofrimento; ao invés de negar ou tentar rigidamente suprimir a experienciação dos prazeres sensoriais, procuramos substituir progressivamente por deleites mais sutis, desejos mais sábios. E o que seriam desejos sábios? As aspirações não contaminadas pela cobiça, ódio e ignorância; aspirações que provêm de relações mais amorosas consigo e com o mundo, deleites mais refinados que emergem dos estados mais profundos da mente, propiciados pela concentração e cultivo das qualidades saudáveis inatas da mente, como a amizade amorosa, a compaixão, a alegria pelo sucesso dos outros, a equanimidade, a sabedoria, a restrição vigiada dos sentidos e suas portas, através das quais os contatos se dão, com o surgimento das sensações e do desejo inábil.

Mesmo os deleites mais sutis, ainda são deleites. A longo prazo, trata-se de desapegarmos totalmente de qualquer expectativa de deleite. Em um nível mais confrontante de treinamento para o desapego ao sensualismo e o corpo, Buddha recomenda a contemplação da morte, da decomposição do corpo como a verdade sobre a impermanência do corpo, de modo a contrabalancearmos a versão unilateral das “vantagens” (assada) do desejo sensual e apego ao corpo, com a visão das “desvantagens” (adinava) do corpo material, reveladas pela contemplação do corpo em decomposição:
“As Nove Contemplações do Cemitério

Novamente, bhikkhus, quando um bhikkhu vê no cemitério um corpo morto depois de um, dois ou três dias após a morte, inchado, lívido, jogado em uma vala, compara seu próprio corpo a esse: “Na verdade, este corpo também tem a mesma natureza, se tornará igual a esse outro, não está isento desse destino”.
Assim ele permanece contemplando o corpo no corpo internamente, ou permanece contemplando o corpo no corpo externamente, ou permanece contemplando o corpo no corpo tanto externamente como internamente.
Permanece contemplando no corpo os seus fatores de aparecimento, ou permanece contemplando no corpo os seus fatores de dissolução, ou permanece contemplando no corpo tanto os fatores de aparecimento como os de dissolução.
A plena atenção de que “existe apenas o corpo” se estabelece. A plena atenção se estabelece apenas com a abrangência necessária para se aprofundar o conhecimento e a própria plena atenção.
Permanece despreendido de tudo que diz respeito ao apego e à visão errada. Não se apega a nada do mundo dos cinco agregados do apego.
Assim é como um bhikkhu permanece contemplando o corpo no corpo...”
(Baseado no texto do Venerável U Silananda, The Four Foundations of Mindfulness, Boston, Wisdom, 2002).

Como esse processo é bastante exigente, procuramos caminhar gradualmente. Contemplamos o corpo, e as sensações, não para criarmos uma aversão ao corpo. Continuamos a cuidar dele com zelo, para que seja saudável, porém trazendo a visão realista sobre sua impermanência, bem como a das sensações que surgem na mente a partir do contato com os objetos sensoriais. Do mesmo modo que em relação com ao lide com a dor, o lide com as experiências sensoriais prazerosas e agradáveis é um processo de treinamento gradual. Experimente e veja. Relembrando, sempre mantendo o bom senso e a adequação progressiva às nossas possibilidades e limites. Escala, escada, rumo a Nibbana, a felicidade duradoura.


Referências


Amabis, J. Mariano; Martho, Gilberto R. Biologia dos organismos. Vol. 2. SP: Editora Moderna, 1998.
Analayo. Satipatthana. The Direct Path to Realization. Cambridge: Windhorse Publications, 2008.
Bhante Rahula. Anotações .11/03/2011, retiro 2011, Casa de Dharma.
Bhikkhu Ñanamoli, Bhikkhu Bodhi (trads). The Middle Length Discourses of the Buddha. A New Translation of the Majjhima Nikaya. Boston: Wisdom Publications, 2004.
Henepola Gunaratana, Bhante. Os Quatro Fundamentos da Plena Atenção. São Paulo: Casa de Dharma, 2012.
_______________ Mindfulness in Plain English. Boston: Wisdom Publications, 2002.
Meditação e a Dor, em A Meditação e a Ciência, www.acessoaoinsight.net
O Livro do Cérebro. Sentidos e emoções. Vol 2. SP: Duetto, 2009.
U Silananda, Sayadaw. The Four Foundations of Mindfulness. Boston: Wisdom Publications, 2002.

_____________ La Matéria (Rupa). Notas de Clase # 7. Curso Introductorio de Abhidhamma. Mexico: Publicaciones Fondo Dhamma Dana. Centro Mexicano del Buddhismo Theravada A.C, 2003

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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)

Neurociências e Saúde


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A Plena Atenção e o Sistema Endócrino-Imunológico

Arthur Shaker


            Como o treinamento da Plena Atenção pode fortalecer nosso sistema endócrino-imunológico, prevenindo o surgimento de certas doenças e apoiando a superação, quando enfermos? O que a ciência médica tem apresentado em suas proposições e pesquisas sobre esse tema?
           
            Iniciemos com uma apresentação sucinta sobre alguns processos básicos de funcionamento desses sistemas e as possíveis intervenções benéficas da mente atenta sobre esses processos. Digo “possíveis” como hipóteses a serem verificadas por pesquisas médicas. Uma apresentação sucinta permitirá ao leitor uma aproximação e familiaridade geral sobre a fisiologia desses sistemas (Amabis & Martho, 1988) e suas ligações com nosso sistema nervoso, como base para proposições das ações da mente.

            Formado pelas glândulas endócrinas (do grego endos, “dentro”, e krynos, “secreção”), o sistema endócrino produz hormônios (de hormon, “por em movimento, estimular”) que são lançados no sangue ou na hemolinfa (líquido circulante que entra em contato direto com as células, alimentando-as e captando suas excreções). Os hormônios estimulam várias funções e processos corporais das respectivas células-alvo, através de um mecanismo do tipo chave-fechadura com seus receptores hormonais (proteínas que se combinam com o hormônio).

            A quantidade de hormônio liberada é controlada por um mecanismo chamado feed-back negativo: a partir de certa concentração no sangue, ocorre uma inibição da atividade da glândula, e uma diminuição aciona a produção e liberação do hormônio pela glândula.

            Já neste aspecto, podemos perguntar: como a glândula “sabe” nessa regulação? A resposta pareceria óbvia: o princípio de sobrevivência atua nessa regulação para manter o equilíbrio relativo do corpo vivo. Seria uma espécie de sapiência biológica. Mas em se tratando de uma sapiência, portanto sabedoria cognitiva, poderíamos reduzir a cognitividade sapiencial a um processo mecânico? Quando se trata de cognitividade, há uma consciência atuante. E onde se aloja essa consciência? No cérebro? Este é um ponto complexo sobre as relações corpo-mente. Na perspectiva da ciência budista da mente, a consciência é um atributo da mente, ou até poderíamos dizer que a mente é consciência, no sentido de cognição, surgindo e desaparecendo momento a momento. A mente é que controla o equilíbrio da vida, embora possamos não perceber (e na maioria das vezes não percebemos) claramente esses processos, devido às suas sutilezas, acessíveis apenas pela concentração e plena atenção aguçadas, advindas de treinamento metódico.

            Mente e corpo atuam segundo processos nos quais as tendências kármicas condicionam a vida da mente-corpo. Entendendo karma (kamma, em páli) como ação qualificada pela intenção (cetana) na ação, a vida é momento a momento condicionada por, e condicionante das tendências kármicas. Os seres vêm à vida como fruto do desejo (tanhã), em suas formas de desejo sensorial (kamma-tanhã), desejo de ser-existir (bhava-tanhã) ou de não existir (abhava-tanhã). A vida fenomênica surge como fruto da cobiça mental, a sede de experimentar sensações e formações mentais volitivas. Para sustentar essa cobiça volitiva, os processos mentais desencadeiam incessantes esforços para equilibrar os processos corporais internos e suas relações com o meio externo. A “sapiência” do sistema endócrino, e do corpo de modo geral, ganha outra luz quando olhada por esse ângulo. Certamente que a dinâmica mente-corpo é bastante complexa e multi-condicionada, mas esses apontamentos são importantes, pois abrem um campo para intervenção da Meditação da Plena Atenção: cultivando a mente atenta e sábia, podemos redirecionar as vias de atuação dos processos neurais-mentais, de tendências enraizadas na cobiça/aversão, para tendências de liberação sobre as demandas aflitivas da “sede de viver”. Isto colabora com o funcionamento mais harmonioso das funções endócrinas.

            À luz desta perspectiva de diálogo com as concepções médicas, vejamos algumas das principais glândulas endócrinas e suas funções:

Hipófise: localizada no encéfalo e ligada ao hipotálamo, é formada de duas partes:         adeno-hipófise (lobo anterior) e neuro-hipófise (lobo posterior).

  • Adeno-hipófise: produz hormônios cuja secreção está sob o controle do hipotálamo:
  •             Somatotrofina estimula o crescimento geral do corpo;
  •             Prolactina (estimula a produção do leite materno);
  •             Endomorfinas (inibidores dos receptores de dor);
  •             Hormônio estimulante da melanina relacionada com as células       pigmentadas da pele);
  •             Hormônios tróficos (estimulam e controlam o funcionamento de outras     glândulas endócrinas):
  •                        TSH (tireóide estimulante) - regula a atividade da tireóide;
  •                        ACTH - regula a atividade da glândula suprarenal;
  •                        FSH e LH – atuam nos testículos e ovários.

  • Neuro-hipófise: libera a oxitocina (que acelera as contrações uterinas para o parto e contrai as glândulas mamárias para a saída do leite materno) e o hormônio antidiurético (ADH, atuante sobre os rins, na retenção de água pelo corpo; a deficiência do ADH gera a diabete insípida). Esses dois hormônios são sintetizados no hipotálamo e levados à neuro-hipófise, para sua liberação no sangue.
           
            Dos hormônios tróficos, dois deles, o TSH e o ACHT, atuam respectivamente sobre as glândulas tiróides e supra-renal:
  •             Tireóide: localizada sob a traquéia, produz hormônios iodados de tiroxina            (T4) e triiodotironina (T3), que aumentam a respiração celular de todas    as células, aumentando com isso a atividade geral do organismo. A calcitonina diminui a quantidade de cálcio no sangue e inibe a liberação    de cálcio dos ossos. Distúrbios da glândula tireóide geram o       hipotireoidismo (redução da atividade da tireóide, com desativação do           metabolismo, obesidade, baixa atividade); bócio (aumento da tireóide pela           falta de iodo na alimentação); hipertireodismo (elevado aumento da      atividade da tireóide, gerando  baixo peso, hiperatividade e apetite         excessiva).
  •             Paratireóides (ligadas à tireóide): produzem o paratormônio, atuante no    aumento do cálcio no sangue e estimulação da liberação de cálcio dos      ossos. A deficiência leva à contrações convulsivas dos músculos         esqueléticos.

      Um interessante tema de pesquisa seria o estudo sobre como o treinamento da mente tranqüila e atenta poderia intervir beneficamente nos quadros de distúrbio do funcionamento da tireóide. Trazendo o foco da mente sobre essa área e irradiando sobre ela pensamentos de metta, a bondade-amizade amorosa por si mesmo, poderíamos distensioná-la e estimulá-la positivamente, visualizando “mentalmente a parte específica [do corpo, neste caso, a tireóide] que está defeituosa. E nós focamos nossa parte naquela parte específica para que ela fique boa. Quando ela está fraca, doente, nós focamos nossa mente naquela parte para trazê-la de volta à normalidade. Para isso, nós temos de ter grande poder de atenção e concentração a cada parte do corpo”. (Gunaratana, 2012, p. 99-100). Isto pode valer para qualquer parte doente do corpo. A tranquilização da mente poderia beneficiar a produção balanceada dos hormônios, bem como distensionar os estados aflitivos que surgem como reações mentais das pessoas que sofrem das disfunções da tireóide.


      A questão do hormônio adrenocorticotrófico (ACHT) se conecta com o funcionamento da glândula suprarenal:

      Glândula suprarenal: localizada sobre cada rim, possui uma parte externa (córtex) e uma interna (medula). Na medula adrenal soa produzidos dois hormônios:

                  Adrenalina (epinefrina) – produção estimulada pelo Sistema Nervoso (SN). Em situações de estresse, leva à concentração de sangue nos músculos e órgãos para uma reação de resposta rápida do tipo luta-fuga, com taquicardia, aumento de pressão, dilatação dos bronquíolos pulmonares para maior troca gasosa, e agitação nervosa. Este é um ponto importante de intervenção da meditação da plena Atenção. Reiteradas exposições à situações de estresse, ao acionar o disparo do sistema nervoso e consequentemente da adrenalina no sangue, leva a um desgaste e irritabilidade extremamente perigosos, com riscos de infarto e outras conseqüências danosas. Cultivando a plena atenção, a tranquilização e a mudança dos padrões mentais geradores do estresse crônico, reequilibramos as funções corporais. A adrenalina também pode ser disparada pela estimulação da busca de sensações prazerosas ou emocionantes de impacto, como certas diversões intensas. A motivação subjacente é a da cobiça por prazeres sensuais intensas, uma das formas do fogo sedento na mente (kamatanhã), gerador de sofrimento mental e desgaste corporal, pois a sede pelo prazer sensorial nunca pode ser plenamente satisfeita. É como tentar apagar o fogo jogando gasolina encima.

                  Noradrenalina (norepinefrina) – com a função de equilibrar a pressão sanguínea, a norepinefrina também é suscetível às reações de estresse, estimulando mais sangue aos grupos musculares maiores.

                  É no córtex adrenal que seus hormônios produzidos podem levar a grandes riscos para a saúde corporal e mental. Ali são fabricados os corticosteróides (derivados do colesterol): os glicorticóides e os mineralocorticóides. Atuando na produção da glicose (para a resposta ao estresse), o principal é o cortisol (hidrocortisona), que também tem a função de reduzir as inflamações alergias, ao diminuir a permeabilidade dos capilares sanguíneos. Os mineralocorticóides (como o aldosterona) atuam no equilíbrio dos sais e água no corpo.

      As glândulas adrenais são estimuladas pela área cerebral do hipotálamo (localizado no encéfalo, no Sistema Nervoso central, SNC). Situações de estresse hiperativam essas produções hormonais para a defesa. Segundo as observações das neurociências, situações de ameaça disparam o alarme da região central da amígdala. Esta encaminha impulsos nervosos para o tálamo (no encéfalo), que envia ao tronco encefálico um sinal do tipo: Acorda! E a norepinefrina é liberada pelo cérebro. O Sistema Nervoso Simpático envia sinais aos órgãos e músculos, preparando-os para a luta-ou-fuga. O hipotálamo (o regulador cerebral primário do sistema endócrino) prepara a glândula hipófise (pituitária) para que esta sinalize as glândulas adrenais para liberar os “hormônios de estresse” (adrenalina e cortisol). O que está acontecendo nesse momento com seu corpo? Aumento do batimento cardíaco, dilatação das pupilas, aumento do sangue nos músculos, dilatação pulmonar, elevação da pressão sanguínea, com riscos de doenças cardíacas, úlceras, hipertensão, arteriosclerose, diabete melito, câncer.

      Para reduzir inflamações dos ferimentos, o cortisol reprime o sistema imunológico (e consequentemente, maior vulnerabilidade a infecções). Reações de estresse desencadeiam-se em dois modos circulares: ativam a amígdala, que produz mais cortisol; o cortisol reprime a atividade do hipocampo (área cerebral que normalmente inibe a amígdala); com isso, a amígdala desenfreada libera mais cortisol. A sexualidade é desativada, a salivação decresce, os movimentos peristálticos diminuem (gerando a constipação), as emoções se intensificam e mobilizam todo o cérebro para ação, que estimula a amígdala para o foco em informações negativas e intensas reações, que desencadeiam medo, raiva, violência. O aumento da ativação do sistema límbico (emocional) e endócrino enfraquece o controle executivo do córtex pré-frontal (PFC). É como um carro disparado, e o motorista vendo todos em volta como ameaças e perigos. Qual o preço dessa vida moderna estressante e disparada? (Hanson, 2009, pgs. 52-53)

      Novamente aqui intervém beneficamente o treinamento da tranquilização (samatha), amorosidade (metta), plena atenção (para a visão clara, vipassana) e sabedoria (pañña) sobre os mecanismos de nossos processos mentais: do quê sinto ameaça? Por quê? Como reajo a essas situações? Com raiva, apego, ignorância? O que está acontecendo com meu corpo nesses momentos? Quais sensações? Estou atento? Grudo nesses processos, alimentando-os em suas negatividades? Porque não deixar ir, com amorosidade e sabedoria? Liberta.

      Sobre o sistema endócrino, restaria ainda falar do pâncreas e das gônadas. As gônadas (testículos e ovários) produzem os hormônios que regulam a reprodução, a sexualidade e o crescimento do corpo. Os testículos produzem o hormônio testosterona (condicionador do impulso sexual) e os ovários produzem o estrógeno (estimula o impulso sexual) e a progesterona (facilitador da gravidez). O pâncreas é uma glândula mista: em sua função exócrina, libera no duodeno suco pancreático, contendo várias enzimas digestivas; em sua função endócrina, produz os hormônios da insulina e glucagon. A insulina facilita a absorção de glicose pelas células (diminuindo a concentração de glicose no sangue), e forma e armazena no fígado o glicogênio, que será transformado, em situações de carência, em glicose no fígado pela estimulação do glucagon. O glucagon também atua na síntese de glicose presente em outros alimentos, por isso aumenta a concentração de glicose no sangue.

      A baixa produção de insulina eleva a taxa de glicose no sangue com muita produção de urina (diminuindo a reabsorção de água pelos rins) e leva o organismo a degradar proteínas e gorduras para conseguir energia (gerando fraqueza), visto que a insuficiência de insulina torna as células pouco permeáveis à glicose. Esse distúrbio hormonal é o da diabete melito, um desequilíbrio na normalidade da taxa de glicose do sangue, regulada pela interação entre a insulina e o glucagon. Abro uma pergunta para pesquisa: o treinamento da plena atenção poderia de algum modo beneficiar o lide da diabete? Talvez não diretamente (no sentido de que meditar curaria a diabete), mas indiretamente é possível: a tranquilização mental e a clareza sobre a impermanência poderiam tornar a mente mais hábil e amorosa no lide desta doença, através da aceitação (não passiva ou conformista), distensão e disciplina terapêutica. Como em todas as doenças, há várias causas da diabete, e é possível que dentre elas haja componentes kármicos que se frutificam nesta vida enquanto distúrbios corporais. Abrir espaço para essa possibilidade de causação, ainda que possa ser uma causa secundária, ajuda a prática terapêutica de aceitação-intervenção saudável. Importante refrisar que aceitação não é sinônimo de conformismo resignado, mas de ver e estar na realidade como ela é, e responder, não com ações reativas movidas pela aversão, mas com ações sábias. Já foi dito por muitos mestres que a doença pode ser um caminho para o despertar da mente: tudo depende de se a olhamos com reatividade aversiva (ou decepcionada) ou se com sabedoria e amorosidade. Isso tem a ver com o princípio sutil do “viver o próprio karma” (Pallis, 1986, p.13-34).

      A existência condicionada é impermanente e insatisfatória. Para manter até certo nível de normalidade o corpo funcionando, milhares de processos corporais e mentais se movimentam momento a momento, nesse esforço por entre a precariedade e fragilidade existencial. Constantes ameaças afligem a sustentação do corpo, trazendo tensões e sofrimento. Este é um dos aspectos da Primeira Nobre Verdade apontada pelo Buddha. Nascemos por conta de nossa cobiça-sede de viver/experimentar sensações e desejos (tanhã); agora temos de lidar com um desses frutos kármicos: a luta pela preservação do corpo sob constantes ameaças internas e externas. Vírus, bactérias, ferimentos e muitos outros invasores que competem conosco por sobrevivência movida por impulsos de existir no samsara condicionado. Se essa competição fosse desenfreada, talvez não passássemos dos primeiros segundos de vida ainda no ventre materno. A existência condicionada seria talvez inviável se não houvesse o princípio oposto ao da devoração: as defesas do corpo, em seu sistema imunológico.

            Resumidamente, segundo a concepção da Biologia ocidental moderna, constituem mecanismos de defesa corporal: pele e mucosas, células fagócitos e respostas inflamatórias. Dotada de uma camada queratinizada, a pele é uma primeira barreira defensiva, que conta com certa acidez gerada pelas glândulas sebáceas e sudoríparas. A segunda linha defensiva são as células-fagócitos que absorvem (fagocitam) os “invasores” do corpo. Leucócitos do sangue (os neutrófilos) ou vivendo nos tecidos (os macrófagos), deslocam-se para fagocitar as substancias nocivas ao corpo. As respostas inflamatórias são defesas criadas pela presença da histamina, que dilata os vasos sanguíneos facilitando a saída dos leucócitos para a fagocitose.

            Constituído de glóbulos brancos e seus órgãos produtores, o sistema imunitário combate em vários modos:
·         na primeira linha, o combate direto fagocitador pelos macrófagos;
·         os linfócitos T, na forma de auxiliadores (CD4), e na forma de matadores (CD8), através do ataque direto às células infectadas por vírus, identificam as substâncias expostas pelos macrófagos e disparam o alarme;
·         linfócitos B, combatem à distancia pela produção dos anticorpos (20% do plasma sanguíneo), que inativam as substâncias estimuladoras de sua produção, que serão fagocitadas pelos macrófagos e leucócitos.

Constituem órgãos do sistema imunitário:

A medula óssea: [produz os linfócitos T (migra ao timo, órgão sobre o coração, onde amadurece) e o B (amadurece na medula)]. Migram depois, e permanecem até sua ativação, nos gânglios linfáticos (contendo glóbulos brancos, localizados estrategicamente na entrada da via respiratória, no tubo digestivo, no pescoço, axilas, virilhas e na parede do intestino, que atacam as substâncias estranhas circulantes pela linfa) e no baço.

            Localizado no lado esquerdo do abdômen, o baço tem várias funções:
  • “Armazenamento de linfócitos e monócitos, dois tipos de leucócitos;
  • Filtração do sangue ara a remoção de microorganismos, substâncias estranhas e resíduos celulares;
  • Destruição de hemácias envelhecidas, transformando a hemoglobina nelas contidas em bilirrubina, que é lançada na circulação, sendo posteriormente removida pelo fígado;
  • Além disso, o baço ainda atua como um “banco de sangue de emergência”, pois armazena hemácias, lançando-as na corrente sanguínea em momentos de necessidade, como em um esforço físico intenso, por exemplo” (Amabis & Martho, 1998, pag. 520-521).

Segundo os autores acima referidos, a atuação do sistema imunitário se dá segundo três mecanismos diferentes:

  • Imunidade humoral – através dos anticorpos (proteínas), cujas extremidades reconhecem e se ligam aos antígenos (substâncias estranhas indutoras dos anticorpos). Casa tipo de anticorpo se liga a um antígeno específico, inativando-o e facilitando sua destruição pelos fagócitos.
  • Imunidade celular – através dos linfócitos T matadores, que lançam sobre as células anormais ou infectadas por vírus, uma substância destruidora, a perforina.
  • Interleucinas - produzidas por macrófagos e os linfócitos T auxiliadores, são proteínas que favorecem o reconhecimento das substâncias estranhas pelos linfócitos:
  •  
                  “Uma vez que um linfócito aprendeu a reconhecer o inimigo, as     interleucinas fazem com que ele se multiplique. Assim, todas as células oriundas de um linfócito que reconheceu determinado antígeno herdam a capacidade de reconhecê-lo. Os linfócitos continuam a se multiplicar enquanto houver antígenos capazes de ativá-los. À medida que os antígenos são destruídos e vão desaparecendo, o número de linfócitos especializados em combatê-los vai diminuindo.

      Mesmo após uma infecção ter sido debelada, resta no organismo certa quantidade de linfócitos especiais, as células de memória, que guardam durante anos, em geral pelo resto da vida do organismo, a capacidade de reconhecer agentes infecciosos com os quais o organismo esteve em contato. Em caso de novo ataque, as células de memória são imediatamente ativadas e estimuladas a se reproduzir. Surge, então, em curto intervalo de tempo, um exército de células defensoras específicas” (Amabis & Martho, 1998, pág. 522).

      Vacinas e soros são produzidos graças á compreensão desses processos. Os autores referidos apontam algumas dificuldades e doenças ligadas ao sistema imunitário:

·         A rejeição a transplantes: devido à reação das proteínas do complexo maior de histocompatibilidade – MHC – reconhecedoras de células estranhas;
·         Auto imunidade: por razões ainda desconhecidas, o corpo produz anticorpos contra componentes do próprio corpo, gerando doenças como artrite, problemas renais, febre reumática, artrite reumatóide;
·         Alergias: causadas pelo anticorpo imunoglobulina G. Ligado a um tipo de célula do tecido conjuntivo (o mastócito), ao se contatar com as moléculas de substâncias alérgicas, libera histamina e com isso a inflamação. Alta sensibilidade a certas substâncias pode causar o choque anafilático, uma reação alérgica generalizada.
·         Aids (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida): causada pelo vírus HIV, que diminui fortemente os linfócitos T auxiliadores (CD4), ativadores de outros linfócitos de defesa, tornando o organismo vulnerável aos antígenos mais comuns.

            Os autores concluem apontando os riscos que o estresse físico e mental acarreta sobre o processo imunológico, deprimindo-o, fazendo com que a pessoa seja passível de doenças como o câncer, doenças que por sua vez se relacionam com estados emocionais depressivos.

            Nesta complexa co-dependência entre fatores biológicos e processos mentais no sistema imunológico, pesquisas científicas serão valiosas para avaliar questões importantes: não estaria esta interpretação das ações imunológicas baseada num “modelo de guerra” advindo do pós-guerra da década de 50? Se esses processos de produção e ações imunológicas de defesa do corpo evidenciam uma sapiência que dirige os órgãos, as substâncias defensoras e os comandos (reconhecer, combater, memorizar), qual a raiz fundante dessa sapiência? Apenas “mecanismos biológicos instintivos”? Como o sistema nervoso intervém nesse processo?

            A perspectiva budista vê a mente como a cognitividade que dirige tanto a consciência como o corpo. É a mente que conhece, em suas atividades que mobilizam as sensações (vedana), a percepção (sañña), as formações mentais volitivas (sankharas) e a consciência (citta). É um desafio para a visão científica como investigar, com instrumentos de mensuração, essa determinação da mente no funcionamento do sistema imunológico. Questão de pesquisa difícil, sobre como os processos mentais condicionam essa sapiência imunológica. Do ponto de vista prático, o importante é saber como fortalecer mental e corporalmente o sistema imunológico. Na pesquisa do projeto Shamata, sob a direção do Dr. Clifford Saron, principal pesquisador do Center for Mind and Brain - UC Davis, e do erudito Budista B. Alan Wallace, se busca explorar como o treinamento intensivo de três meses na prática de meditação afeta a cognição, o comportamento e a fisiologia. Segundo os pesquisadores, em sua avaliação de como alguns indicadores biológicos podem mudar como resultado do treinamento meditativo: “Um desses indicadores, telomerase, uma enzima que protege o material genético durante a divisão das células e que incrementa a viabilidade da célula, pode ser suprimida em resposta à aflição psicológica. Amostras de sangue obtidas ao final do retiro revelaram que a atividade da telomerase estava significativamente mais elevada nos participantes do retiro, (versus grupo de controle), e que a atividade da telomerase estava relacionada às mudanças no bem-estar induzidas pela meditação” (1).

            Podemos encontrar uma afinidade entre a perspectiva budista e a homeopática, pois, como vimos no cap. 2, a Homeopatia considera que as doenças, e neste caso, as que envolvem o sistema imunológico, provêm do desequilíbrio mais interno, no Plano Dinâmico que governa a saúde geral do organismo humano, regulando os mecanismos de defesa. A Plena Atenção sobre o corpo, e mais especificamente nos órgãos desse sistema imunológico, trazendo para eles tranquilização, amorosidade e energia saudável é um dos treinamentos hábeis de meditação. Outro aspecto saudável é o treinamento da purificação dos venenos mentais da cobiça, ódio e ignorância sobre a realidade condicionada e suas características de impermanência (anicca), insatisfatoriedade (dukkha) e impessoalidade (anatta).

            Tranqüilizando e purificando a mente, as energias mentais saudáveis se irradiam pelo Sistema Nervoso e o corpo como um todo, prevenindo e fortalecendo o sistema imunológico, ainda que não se saiba exatamente como o sistema nervoso atua no sistema imunológico. Mas se é dito que os estados mentais não saudáveis (estresse, tristeza, raiva, melancolia) deprimem o sistema imunológico, certamente isto indica (ainda que não se possa saber como) a forte correlação com o sistema nervoso, que por sua vez (na perspectiva da ciência budista) é correlato com a mente (outro ponto complexo).

            Um outro aspecto importante (e difícil) de investigação científica é a da relação entre karma e imunologia: como os karmas (kammas) que determinam o renascimento condicionam esses processos imunológicos? Como limitam? Considerando se tratar de processos num plano sutil, talvez não seja possível mensurar com instrumentos empíricos essa complexa correlação. Ainda assim, considerando que karma é a ação volitiva intencional, que devido à lei de causa e efeito, gera efeitos nos processos mentais, podemos por inferência supor que as intenções (cetana) de nossas ações influenciam, mesmo que indiretamente, a vitalidade de nossos processos imunológicos. Nesse sentido, a qualidade do sistema imunológico se beneficiaria do cultivo do Nobre Óctuplo Caminho, a Quarta Nobre Verdade, que leva à cessação do sofrimento: compreensão hábil, pensamento hábil, fala hábil, ação hábil, modo de vida hábil, esforço hábil, plena atenção hábil, concentração hábil. E, inversamente, a negligência dessa compreensão e cultivo enfraquece o sistema imunológico, pois alimenta um modo de vida corporal e mental não saudável, do qual estados mentais e corporais como estresse, depressão, raiva, etc., são sintomas que, de um lado, nos alertam sobre as tentativas do Plano Dinâmico ativar o mecanismo de defesa possível para aquela pessoa naquele momento, mas por outro lado, são sintomas doentios, que se não superados, levam ao progressivo sofrimento e colapso da vida da pessoa.

            Outro ponto importante de investigação: poderíamos propor que o sistema imunológico se processa momento-a-momento, dependente de causas e condições, e por isto é fortalecido (ou enfraquecido) momento-a-momento, ao mesmo tempo em que é condicionado pelo “armazenamento” de memórias e potencialidades, armazenamento condicionado pelos karmas? A importância e determinação do karma na qualidade do sistema imunológico é uma hipótese a ser examinada. A capacidade das células de memória de reconhecer a natureza química dos agentes infecciosos não seria uma qualidade da consciência mental (citta), por sua vez tendo o karma como um de seus fatores emergentes no processo cognitivo, que se dá momento-a-momento? É importante esclarecer que as tendências kármicas não são apenas de caráter não-saudável, há as saudáveis. É graças a estas que ocorre o nascimento no estado humano, venturoso em relação a outros estados de maior sofrimento, como o estado animal ou estados infernais, segundo a cosmologia budista. Raro é o nascimento no estado humano, ensina o Buddha. E precioso, pois o intelecto nesse estado tem potencialidade para a libertação-iluminação. A questão é como usamos esse condição de ser humano: qual o sentido que imprimimos à nossa vida humana? Reforço da cobiça, ódio, ignorância, ou caminho da libertação dos ciclos de nascer e morrer (samsara), com todos os sofrimentos que eles encerram indefinidamente?

            Outro ponto de investigação: haveria influências kármicas atuando no processo de auto-imunidade? Por que o corpo trabalha contra o corpo? Seria uma forma de auto defesa distorcida? Poderia ser expressão sintomática corporal de karmas auto-destrutivos? O cultivo da amorosidade, aceitação e resposta mental não-reativa pode ser de grande valia terapêutica para a reversão desse processo, de acordo com as causas e condições de cada pessoa. Fica posto este tema para a pesquisa científica sobre os efeitos da Meditação da Plena Atenção no sistema imunológico. A própria questão das reações alérgicas poderia ser trabalhada com o apoio complementar da Meditação Plena Atenção. Não haveria, nessas reações alérgicas a certas substâncias, certa dimensão de aversão-irritação mental, na qual intervêm heranças kármicas? Reações alérgicas não poderiam ter uma dimensão de auto defesa não apenas química a certas substâncias, mas mental, em que sobrecargas de energias calóricas geradas por tensões mentais são descarregadas nos órgãos ou na pele? Nesse caso, bloquear essas reações poderia ser um caminho equivocado. Seria mais saudável permitir essa liberação, ainda que moderando com o alívio dos sintomas desconfortáveis. O mesmo se aplicaria para o caso do sintoma da febre. É certo que permitir essa liberação exige aceitação de algum grau de desconforto e irritação, mas o apoio de medicamentos que ajam pela moderação (e não bloqueio) e o treinamento mental da tranquilização, amorosidade e clara compreensão sobre o corpo ajudam na superação das reações alérgicas. Também aqui as reações alérgicas podem ser um objeto de meditação, principalmente porque elas envolvem o lide com a aversão às sensações desprazerosas, a outra face da moeda, a do apego às sensações prazerosas. Este é o próximo tema que devemos examinar.


Notas



Referências

Amabis, J. Mariano & Martho, G. Rodrigues. Biologia dos Organismos. Classificação, estrutura e função nos seres vivos. Vol 2. SP: Ed. moderna, 1994.
Hanson, Rick, Mendius Richard. The practical neuroscience of Buddha’s Brain. Happiness, love & wisdom. USA: New Harbinger Publications, 2009
Henepola Gunaratana, Bhante. Os Quatro Fundamentos da Plena Atenção. São Paulo: Casa de Dharma, 2012.

Pallis, Marco. Espectro luminoso del budismo. Barcelona: Herder, 1986.


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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)

Neurociências e Saúde


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a Plena Atenção e o  Sistema Digestivo: processos alimentares 

Arthur Shaker


            Os nutrimentos são uma das condições fundamentais para a existência. De acordo com os ensinamentos budistas, há quatro tipos de alimentos (ahara), material e mental:
1.      alimento material (kabalinkarahara);
2.       impressão (contato) sensorial e mental (phassa);
3.      volição-pensamento (mano-sancetana);
4.      consciência (viññaña)
(Nyanatiloka, 1970, p.6)

            Nosso corpo é formado pelos quatro grandes elementos: terra, água, fogo e ar. O quatro elementos são encontrados em todos os seres sencientes e inanimados. Elemento, neste contexto, não corresponde ao que comumente entendemos, mas às qualidades que caracterizam cada um deles. Terra significa as qualidades de extensão, ocupação do espaço, massa; firmeza, dureza-maciez, estabilidade; sua função é de atuar como fundação, suporte. Assim, a suavidade do toque da água é o elemento terra. A característica do elemento água é a coesão ou fluidez. A característica do elemento fogo é a radiação, o calor. O calor tem quatro funções: digerir os alimentos, manter a temperatura do corpo, permitir a sensação da queimação, produzir a febre. Pelo elemento fogo, os alimentos são cozidos, o corpo envelhece. A característica do elemento ar é a expansão, oscilação, movimento. Há seis tipos no elemento ar: o ar ascendente, que causa os vômitos, o soluço, etc; o ar descendente, que leva as fezes e urina para fora do corpo; o ar do estômago; o ar nos intestinos; o ar que percorre todos os membros; a respiração (inspiração e expiração) (Silananda, p.68). Poderíamos ainda incluir o elemento “espaço”, os aspectos vazios e ocos do corpo (Analayo, 2008, p.151). Veremos, mais adiante, como os quatro elementos constitutivos do corpo podem ser focos da Meditação da Plena Atenção.

            Os elementos também são constitutivos de todos os alimentos materiais para o corpo. Cada vez mais têm surgido estudos e recomendações para um balanceamento saudável na alimentação (“diga-me o que comes, que direi quem és), e alertas sobre o abuso de carnes muito gordurosas, frituras, doces, refrigerantes, enlatados e alimentos industrializados de modo geral. A escolha dos alimentos, a quantidade e sua distribuição no ciclo diário são pontos de partida da atenção saudável: o que efetivamente necessito de alimentação? Estão adequados à fase presente da minha vida, ao tipo de atividade que realizo, às estações do ano, aos períodos do dia?

            A plena atenção nos direciona para uma compreensão clara sobre o significado da nutrição: comemos para fornecer os nutrientes necessários à sustentação do corpo, para que o corpo sustente nosso caminho espiritual, e para o arrefecimento da sensação desagradável da fome e fraqueza corporal, ou para engordar? Frequentemente, por ignorância e carências, deslocamos as insatisfações mentais para objetos que parecem compensar as várias insatisfações, e um dos marcantes objetos de compensação (e deslocamento da insatisfação) é a comida. Subjacente a esse hábito impulsivo, está o sofrimento causado pela cobiça dos sentidos, cuja raiz é a ignorância sobre a Nobre Verdade da insatisfatoriedade da existência condicionada. A obesidade é um dos grandes males que a humanidade enfrenta atualmente. Reduz-se por cirurgia o tamanho do estômago, mas não trabalhamos na raiz do problema, a cobiça sensorial que vem pelo olho, nariz, língua, ouvido e tato. Por onde o peixe é fisgado?

            Os nutrientes, enquanto energia necessária ao metabolismo corporal e matéria-prima para o crescimento e regeneração, podem ser classificados em:

            carboidratos e lipídeos (alimentos energéticos),
            proteínas (fornecedoras dos aminoácidos para as células),
            sais minerais (cálcio para os ossos, ferro para transporte do oxigênio para as células via hemoglobina, fósforo para energia nas reações químicas, etc.),
            vitaminas (nas reações catalizadas por enzimas), e água. Fornecem também as reservas energéticas diárias de glicogênio, pela conversão de parte dos carboidratos ingeridos, e armazenado no interior das células dos músculos e do fígado. Ultrapassado o limite da reserva necessária, o excesso de carboidratos consumido se transforma em gorduras que se armazenam nos tecidos adiposos. O outro extremo da má-nutrição é a subnutrição, que leva à degradação das proteínas celulares e de órgãos vitais como o cérebro e o coração, atrofiando os músculos e provocando lesões físicas e mentais (Amabis & Martho, p. 327-331). Entre outras, causas sociais e ignorâncias alimentares estão na raiz da subnutrição que ainda afeta significativa parcela da humanidade. Produção e acesso ao consumo de alimentos no nível regional e global é um tema importante no contexto atual de uma humanidade que cresce rapidamente. Gandhi dizia que uma das maiores violências é a da fome.

            Estudiosos da área médica e da nutrição têm levantado alertas sobre os riscos envolvidos no crescente uso dos alimentos industrializados, desde a questão da matéria-prima com adubos químicos, os transgênicos, e os processamentos industriais, com o uso de conservantes, aromatizantes, açúcares, etc. Alguns médicos já recomendam a importância de se voltar para a “comida da vovó”. O bom senso e a reflexão na escolha da dieta é um critério prático e funcional importante.

            O treinamento da Plena Atenção na alimentação prossegue agora com o foco no contato dos sentidos diante da comida, principalmente os sentidos da visão e olfato. Quando os olhos contatam a visão da comida, prestamos atenção à atividade da mente: há cobiça, aversão ante às cores e aromas da comida? Quanto isso condiciona a quantidade de comida que colocamos no prato? Quanta expectativa-desejo de sensações prazerosas colocamos no olho e olfato diante da comida?

            Colocado o alimento na boca, inicia-se o processo da digestão. Ao invés de deixar a mente divagar em pensamentos distrativos, nos conectamos com todos os momentos do alimentar-se: atentos à intenção-ato de pegar o talher, levar até o prato, por a comida no talher, levar a comida até a boca, mastigar, sentindo o gosto, descansar o talher na mesa, observar as sensações na boca. Os monges sugerem que mastiguemos a comida como fazem as vacas. Lenta e pacientemente. Quanto de apego-cobiça e distração percebemos no ato de mastigar? Estamos atentos às sensações? Ao apego? O quanto as sensações prazerosas-desprazerosas do comer reforçam as tendências de cobiça e aversão, que por sua vez reforçam nossas crenças ilusórias sobre a felicidade?

            Através das enzimas digestivas, as moléculas dos alimentos como as proteínas, gorduras e carboidratos devem ser quebradas em moléculas menores. As proteínas são digeridas pelas enzimas proteases, os carboidratos pelas carboidrases e os ácidos nuclêicos pelas nucleases. Temperatura e grau de acidez (pH) condicionam a atuação das enzimas. Na boca, além da trituração dos alimentos, ocorrem metabolizações pelas glândulas produtoras de muco e enzimas. Com plena atenção nessa etapa da digestão, além de facilitarmos a trituração, colocamos na tranquilização e contentamento moderado nas sensações, uma qualidade mais saudável de digestão, balanceando a quantidade de comida. Quando distraídos, tendemos a ingerir mais quantidade do que talvez necessitássemos, e com isso reforçamos a tendência da cobiça sensorial. Além disso, estados mentais mais atentos e relaxados estimulam e balanceiam a atividade das áreas do sistema nervoso envolvidas na digestão, como o hipotálamo, o sistema nervoso periférico autônomo parassimpático, o sistema endócrino, bem como a ação das glândulas salivares, que secretam a saliva, que contém a enzima amilase salivar (ptialina) e sais:

            “A amilase salivar digere amido e outros polissacarídios (como o glicogênio, por exemplo), reduzindo-os a moléculas de maltose, um dissacarídio. Os sais presentes na saliva neutralizam substâncias ácidas e mantêm, na boca, um pH levemente ácido (em torno de 6,7), ideal para a ação da ptialina. Diversas glândulas do epitélio que reveste a boca secretam muco, que se mistura à saliva, tornando-as viscosas. A viscosidade da saliva protege o epitélio bucal e faringeano do atrito com os alimentos e facilita a deglutição” (Amabis & Martho, p. 339).

            O bolo alimentar passa pela faringe e esôfago, e entre o esôfago e o estômago há um anel que se contrai e relaxa, permitindo a passagem do bolo alimentar, que chega ao estômago, onde se mistura com o suco gástrico, rico em ácido clorídrico e as enzimas da pepsina e renina. “A pepsina (...) digere proteínas, quebrando as ligações peptídicas entre certos aminoácidos. (...) A pepsina é secretada pelas glândulas da mucosa gástrica na forma inativa, chamada pepsinogênio. Este, quando entra em contato com o ácido clorídrico, transforma-se em pepsina. A própria pepsina forma, por sua vez, estimula a transformação de mais pepsinogênio em pepsina. A função da renina (produzida em pequena quantidade nos adultos) é coagular as proteínas do leite, que, assim, permanecem durante mais tempo no estômago. Isso favorece uma digestão mais completa desses alimentos. O ácido clorídrico torna o conteúdo estomacal fortemente ácido (pH em torno de 2), o que contribui para destruir microorganismos, amolece alimentos e fornecer condições de acidez ideais para a ação da pepsina, que atua em meio ácido. Apesar de estarem protegidas por ma densa camada de muco, as células da mucosa estomacal são continuamente lesadas e mortas pela ação do suco gástrico. Por isso a mucosa está sempre sendo regenerada. Estima-se que nossa superfície estomacal seja totalmente reconstituída a cada três dias” (Amabis & Martho, p. 342).

            Como a Meditação da Plena Atenção pode intervir para uma digestão mais saudável? Na a digestão, há processos fisiológicos relativamente autônomos da nossa vontade. Processos relativamente autônomos, mas não totalmente: “O estômago produz cerca de três litros de suco gástrico por dia. Esse volume de secreção é controlado tanto por impulsos nervosos como por estímulos hormonais. A visão, o cheiro ou o sabor do alimento estimulam nosso sistema nervoso central, e este, por meio de nervos, estimula as células estomacais a secretarem suco gástrico” (Amabis & Martho, p. 342). Ou seja, estados mentais intervém de modo significativo nesses processos, fato que podemos perceber pela nossa própria experiência: tensão, cobiça, sofrimentos, distração dificultam a digestão e geram várias doenças digestivas. A plena atenção e a concentração tranqüila durante a digestão trazem benefícios para a digestão, pois atuam diretamente no sistema nervoso central, e indiretamente no sistema nervoso periférico, na produção hormonal e nos músculos estomacais: estamos atentos a isso?

            No intestino ocorre a parte significativa da digestão, sob ação de enzimas das paredes intestinais, e a absorção de nutrientes enviados ao corpo. Participam também as importantes glândulas anexas ao tubo digestivo, o fígado e o pâncreas, com suas secreções no intestino delgado: “A secreção do fígado contém água, sais e ácidos, importantes na digestão de gorduras. A secreção do pâncreas contém água, enzimas e bicarbonato de sódio, este último responsável pela neutralização da acidez do alimento que vem do estômago” (Amabis & Martho, p. 336). No intestino delgado (duodeno, jejuno e íleo) continua a digestão do quimo, massa acidificada e semilíquida em que se transforma o bolo alimentar. Glândulas intestinais produzem o suco intestinal, rico em enzimas digestivas como a enteroquinase (que transforma o tripsinogênio em tripsina) e as peptidases (enzimas que decompõem os peptídeos em aminoácidos).

            Intervêm no processo digestivo as glândulas do pâncreas e fígado. O pâncreas produz o suco pancreático (composto de bicarbonatos e enzimas) e hormônios. Contendo enzimas digestivas, o suco pancreático é alcalino e contém bicarbonato de sódio, que neutraliza a acidez do quimo para um pH apropriado à atuação das enzimas dos sucos intestinais e pancreático, como:

            a tripsina e a quimotripsina (liberados pelo pâncreas na forma inativa de tripsinogênio e quimotripsinogênio), que digere proteínas;
            a lipase pancreática, que digere lipídeos;
            a amilopsina, que digere polissacarídeos.

            No duodeno, o tripsinogênio é transformado em tripsina pela ação da enteroquinase; por sua vez, a tripsina atua sobre o tripsinogênio, transformando em quimotripsina (Amabis & Martho, p. 342-43).

            Mais do que guardar nomes químicos, o propósito aqui é abrimos mais atenção ao fato de que nesta complexidade do processo digestivo, a bioquímica digestiva pode ser melhor processada quando cultivamos a plena atenção e o contentamento mental que colaborem para, de um lado, facilitar os processos do corpo, e , de outro, desenvolver o desapego, a amorosidade genuína por nós mesmos e a sabedoria sobre o quanto de esforço e sofrimento a sustentação da vida condicionada exige, desde o nascimento até fim de um ciclo de vida. E mais renascimentos. Até quando queremos prosseguir nesses ciclos incessantes de nascer e morrer? Toda essa massa de sofrimentos, em nome de quê?

            A enzima amilopsina quebra as grandes moléculas dos polissacarídeos em maltose, por sua vez quebrada em moléculas de glicose pela enzima maltase. Outras enzimas do suco intestinal, como a sacarase, quebra a sacarose em glicose e frutose; a lactase quebra a lactose em glicose e galactose. As enzimas tripsina e quimotripsina quebram as proteínas em oligopeptídios, digeridos pelas peptidases do suco intestinal. Quantos processos! Onde estávamos até agora? Próximos do corpo? Injuriando o corpo em quais supostos ganhos de felicidade?

            Felicidade é um tema central e complexo na mente humana. É central porque é a busca que todos os seres almejam viver. É complexo porque depende das crenças que temos sobre ela. A maioria de nós acredita que felicidade é sinônimo de desfrute dos prazeres sensuais, outro tema importante e complexo. Assim, quando as condições existenciais correspondem aos nossos desejos, nos sentimos felizes; quando contradizem nossos desejos, nos sentimos infelizes. Embora seja natural eu em nossas fases iniciais de vida persigamos as condições prazerosas (corpo saudável, sucesso profissional, financeiro, sexual, familiar e de relacionamentos sociais e afetivos), tendemos a ignorar a verdade da impermanência e ficamos presos a esse nível do apego aos objetos sensoriais. Desconhecemos os horizontes mais superiores de felicidade e alegria mental, que culminam com o estado da mente incondicionada, Nibbana, livre das impurezas da cobiça, ódio e ignorância. E como vemos o corpo como o maior veículo de nossos objetos e metas de felicidade sensorial, ora esquecemos do corpo, na suposição de que ele vai funcionar sempre bem, e automaticamente, e o sobrecarregamos com excesso de cobiças, ora investimos nele, mas ainda para os mesmos desejos. Ou ambos.

            Retomando nossa observação sobre o processo digestivo, três outros hormônios produzidos pelo intestino participam da digestão: a secretina (que chega ao pâncreas, estimulando-o a liberar o bicarbonato de sódio), a calecistoquinina (liberada pela estimulação de gorduras e proteínas parcialmente digeridas no quimo, e que ao tingir a vesícula biliar e o pâncreas, estimula-os a liberarem a bile e o suco pancreático) e a enterogastrina (que diminui os movimentos peristálticos estomacais, dando mais tempo para a digestão. (Amabis & Martho, p. 344).

            O fígado produz a bile (conduzido à vesícula biliar), que emulsiona as gorduras, transformando-as em pequenas gotículas, facilitando a aça da lípase pancreática. Maior glândula de nosso corpo, o fígado realiza funções importantíssimas. Pela veia porta-hepática circula sangue vindo do intestino (rico em nutrientes absorvidos na mucosa intestinal); pela artéria hepática circula sangue advindo do coração (rico em oxigênio absorvido nos pulmões). “O fígado é um dos mais versáteis órgãos do corpo humano. Estas são algumas de suas inúmeras funções:

  • secretar bile, líquido que atua no emulsionamento das gorduras ingeridas, facilitando , assim, a ação da lípase;
  • remover moléculas de glicose no sangue, reunindo-as quimicamente para formar glicogênio, que é armazenado; nos momentos de necessidade, o glicogênio é reconvertido em moléculas de glicose, que são relançadas na circulação;
  • armazenar ferro e certas vitaminas em suas células;
  • sintetizar uréia a  partir de duas substâncias tóxicas,a a amônia e o gás carbônico; esta substâncias são, assim, removidas do sangue e eliminadas, na forma de uréia, pelos rins;
  • degradar álcool e outras substâncias tóxicas, auxiliando na desintoxicação do organismo;
  • destruir hemácias (glóbulos vermelhos) velhas ou anormais, transformando sua hemoglobina em bilirrubina, o pigmento castanho-esverdeado presente na bile” (Amabis & Martho, p. 347).
            A importância do fígado não se reduz apenas às suas funções corporais. Sua influência nos estados mentais e humores, e vice-versa, é empiricamente experienciável, e merece maiores estudos, aos quais voltaremos em textos futuros.

            O estômago absorve apenas substâncias como o álcool etílico, a água e alguns sais. A maior parte dos nutrientes chega à corrente sanguínea via mucosa do intestino delgado, como os aminoácidos e açúcares (provindo da digestão de proteínas e carboidratos) e grãos lipídeos (reconvertidos do glicerol e ácidos graxos). No intestino grosso, é absorvida parte da água e dos sais da massa de resíduos, que se transformam em fezes, defecada pelo reto pela ação da contração da musculatura abdominal e da contração-relaxamento dos esfincteres interno e externo do ânus: “Cerca de 30% da parte sólida das fezes é constituída por bactérias vivas e mortas e os 70% restantes são constituídos por sais, muco, fibras de celulose e outros componentes não digeridos. A cor escura das fezes é devida à presença de pigmentos provenientes da bile” (Amabis & Martho, p. 348).

            O treinamento da Meditação da Plena Atenção se estende à todas as atividades do corpo. Isso inclui a atenção e relaxamento no processo de eliminação das fezes. O fortalecimento e massageamento dos músculos abdominais através dos exercícios físicos com plena atenção é parte importante e beneficial do cultivo corpo-mente. Outro aspecto merecedor de atenção no balanceamento da alimentação é o papel da flora intestinal: “No intestino grosso  proliferam diversos tipos de bactérias, muitos dos quais mantêm conosco relações amistosas, produzindo as vitaminas K, B12, tiamina e riboflavina, entre outras, em troca do abrigo e alimento de nosso intestino. Essas bactérias úteis constituem nossa flora intestinal e evitam a proliferação de bactérias patogênicas, que poderiam causar doenças “(Amabis & Martho, p. 342-43).

            Quantos processos mobilizados na vida corporal! Como treinar a mente e o corpo na plena atenção à alimentação, desde a escolha dos alimentos em suas qualidades nutrientes, sua quantidade, e em cada pequeno trecho do processo digestivo, a plena atenção desde a percepção do alimento, ingestão, mastigação, deglutição, digestão e defecação? Como a plena atenção pode diminuir a incidência de distúrbios e doenças digestivas como a prisão de ventre, gastrites e úlceras, pancreatites, cálculos vesiculares, câncer de intestino? E o alcoolismo?

            Cuidar do corpo. Como fazer isso sem grudar a mente nele? O corpo é um agregado, impermanente sim, mas não é a fonte do “pecado” ou “do mal” (outra visão incorreta): o problema é o apego, a visão distorcida de que o corpo é permanente ou sempre fonte prazerosa. Também é dor e sofrimento. O corpo é impermanente porque é constituído pelos quatro elementos terra-água-fogo-ar, impermanentes. Meditamos sobre os quatro elementos para ver que o corpo é composto desses quatro elementos impermanentes, instáveis. No Satipatthana Sutta, Buddha nos convida a refletir sobre os elementos materiais na constituição do corpo, através do símile da vaca que ao ser dividida em pedaços pelo açougueiro, deixa de existir como o conceito “vaca”. De modo similar, o que chamamos “nosso corpo” é apenas um conceito, um constructo mental. Treinamos a mente a ver o corpo como uma composição provisória, sempre impermanente e instável de quatro elementos, sem um “eu-sujeito dono do corpo”:

E novamente, bhikkhus, um bhikkhu reflete sobre seu corpo, como este se coloca em relação aos seus elementos primários: “Existe neste corpo o elemento terra, o elemento água, o elemento fogo e o elemento ar?”
Como um habilidoso açougueiro e seu aprendiz, tendo matado uma vaca e dividido-a em porções, se sentassem em um cruzamento de quatro rodovias, assim também, bhikkhus, um bhikkhu reflete sobre seu corpo, como ele se coloca em relação aos seus elementos primários: “Existe neste corpo o elemento terra, o elemento água, o elemento fogo e o elemento ar” (Silananda, 2002, p. 65).

            Podemos reconhecer os quatro elementos no corpo no treino da meditação andando: quando parados, estão mais ativos os elementos terra e água e mais passivo os elementos ar e fogo; quando nos movemos, estão mais ativos os elementos ar e fogo e mais passivos os elementos terra e água. Contemplamos a mudança em cada movimento do corpo, compreendendo a verdade de sua impermanência.
            Aplicando a plena atenção e investigação da presença dos quatro elementos materiais do corpo, aplicando a plena atenção nos diversos sub-momentos do processo digestivo corporal, podemos transpor analogicamente a treinamento para o cultivo da plena atenção nos diversos sub-momentos do “processo digestivo mental”: quais e quantos alimentos mentais escolhemos ingerir pelas portas sensoriais? Quantos são realmente nutrientes (saudáveis)? Como processamos a digestão-assimilação desses alimentos mentais? Um monge sugeriu que assim como fazemos a higiene do corpo no toalete, deveríamos ter um “toalete mental” onde sentássemos e fizéssemos diariamente a higiene dos resíduos mentais.
  

Referências

Amabis, J. Mariano; Martho, Gilberto R. Biologia dos organismos. Vol. 2. SP: Editora Moderna, 1998.
Analayo. Satipatthana. The Direct Path to Realization. Cambridge: Windhorse Publications, 2008.
Nyanatiloka. Buddhist Dictionary.  Manual of Buddhist Terms and Doctrines. Taiwan: The Coporate Body of the Buddha Educational Foundation, 1970.
Shaker, Arthur. A travessia buddhista da vida e da morte. Introdução a uma Antropologia Espiritual. RJ: Gryphus, 2003.
U Silananda, Sayadaw. The Four Foundations of Mindfulness. Boston: Wisdom Publications, 2002.



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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)

Neurociências e Saúde


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a Plena Atenção e o sistema esquelético-muscular: 
o movimento corporal

Arthur Shaker 


A sustentação dos tecidos e órgãos do corpo humano é possibilitada pelo esqueleto, palavra que deriva do grego skeleton, dissecar, tornar seco. É a parte mais dura do corpo. Protege os órgãos internos e fornece base de apoio para a fixação muscular.

Já nessas primeiras características, poderíamos perceber ângulos simbólicos significativos: suporte, sustentação, apoio, proteção, eixo, arquitetura, articulação base para a movimentação dinamizada e flexibilizada pelos músculos, tendões, cartilagens. E não é sem razão que em muitos ritos funerários tradicionais os ossos tinham especial significação: “o princípio indestrutível da vida; o essencial; ressurreição, mas também mortalidade e o transitório; supões-se frequentemente que a destruição dos ossos atrasaria a ressurreição” (Cooper, 1982, p.23).

Como a parte mais resistente do corpo, os ossos, ao simbolizar o aspecto indestrutível da vida, eram preservados; por isso o corpo, para certas tradições, deveria ser enterrado. Entre os Mbyá-Guarani, no corpo humano, o esqueleto masculino é chamado yvyra’ikãgã, palavra sagrada usada pelos deuses, que significa “ossos daquele que porta a vara-insígnia”. Yvyra’i é a vara-insígnia, símbolo do poder do deus criador Ñande Ru e dos dirigentes. Na extremidade de yvyra’i surgiu as chamas e a neblina das quais será engendrado o Universo. Kãgã são os ossos (kã, kang). Interessante: na língua pali, anga designa “membros”; anguli “dedo”. Nexos entre certas línguas arcaicas? Tema de pesquisa. O corpo–ossos da mulher é chamado takuaryva’i kãgã, pois a mulher usa uma vara de bambu (takua) para dirigir as danças e os cantos. A conservação dos ossos se relaciona com a ressurreição dos corpos, tema também presente nas tradições semíticas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo). Entre os Guarani, o cadáver é enterrado num cesto de taquaras; após a putrefação das carnes, o corpo é exumado, os ossos cuidadosamente guardados num recipiente de madeira, e objeto de cantos e recitações, na convicção da ressurreição dos esqueletos (Cadogan, 1959, p. 17, 51-52).

O esqueleto também simboliza a Morte, “a sutil passagem do tempo e da vida. Com a grande foice e a ampulheta, o esqueleto configura o Ceifador, cortando a vida; pode também simbolizar a lua, as sombras, os deuses da morte e é especialmente associado a Cronos/Saturno e ao deus maia da morte e do mundo subterrâneo. Na Alquimia representa o estágio da putrefação na Obra, e é expresso pela cor negra” (Cooper, 1982, p.153).

Já em certas tradições, como no Budismo, a cremação e redução dos ossos à cinzas denota a ênfase marcante na impermanência. Pouca importância se daria aos restos mortais do corpo, embora em certas linhagens se costume guardar as cinzas numa urna, sendo objeto de culto pelos parentes. Em muitos mosteiros budistas, há um esqueleto humano para nos relembrar da verdade da impermanência, escondida por detrás a aparência da pele.

A pele, como revestimento, realiza várias funções: protege o corpo contra a invasão de corpos estranhos, regula a temperatura corporal, sensorializando o frio, o calor, a pressão; nela há terminações nervosas e órgãos sensoriais para a percepção da viscosidade, dureza, aspereza, maciez, umidade; a camada externa de células mortas (a quiratina), sempre descamando e se renovando, é um revestimento bastante impermeável à perda de água e resistente ao atrito.

Por um lado, a pele serve fisicamente de proteção; mas por outro, é objeto de cobiça dos sentidos, mantendo a mente apegada às ilusões do mundo sensorial, haja visto o quanto investimos em nossa aparência física, pois que muito de nosso relacionamento com os outros e com nossa auto imagem é influenciado pela percepção e valorização da imagem corporal. Não há nada de errado em cuidarmos de nossa aparência física. Manter o corpo limpo e com aparência saudável é normal. O problema é o apego. Subjacente ao apego à nossa aparência está a raiz da ignorância: por detrás de nossa relação com nossa auto imagem, principalmente a facial (“espelho, espelho meu”), está a noção de um “eu” que se identifica com o corpo. E nesta identificação, o rosto ganha um lugar marcante. Por isso os salões de beleza e centros de estética facial vivem repletos. O “valor de mercado” de nossa aparência facial no mundo social é grande: afeto e auto estima são negociados, em variados graus, através do modo como vemos e somos vistos em nossas aparências. E num nível mais profundo, toda vez que nos olhamos no espelho, lá está refletida essa noção: “Isto sou eu!”. E esta noção de uma identidade “eu-ego”-corpo é uma delusão, uma construção criada pela ignorância sobre a natureza insubstancial dos agregados corpo-mente.

Desta visão distorcida surge a lamentação: a boa aparência e a pele sensual trazem ganhos de prazer; sem isto como vamos viver? É certo, se não trouxesse alguma gratificação, não investiríamos tempo e energia nisso. Não há nada de errado no experienciar certo prazer gerado pelo contato dos sentidos com os objetos correspondentes: imagens (consciência visual), sons (consciência sonora), aromas (consciência olfativa), gostos (consciência gustativa), tatos (consciência corporal ou tátil, através da pele) e pensamentos agradáveis (consciência mental). A questão é: o quanto dependemos disto? Que grau de clareza temos sobre essas dependências? Quando experimentamos sensações desprazerosas, perdas ou ausências desses ganhos sensoriais, o que acontece com a nossa mente? Permanecemos equânimes, emocional e mentalmente equilibrados? A verdade é que quase sempre sofremos: irritação, raiva, desapontamento, tristeza, frustração, queda na auto estima, depressão.

É verdade que não vamos abandonar tão facilmente o apego ao sensorial e à nossa auto imagem. Investimos muito nisto até agora, o ego se identifica com esses desejos sensoriais, criando raízes profundas de apego na mente. Ma podemos gradualmente mudar nossa compreensão. Começando pela percepção e reflexão sobre o quanto sofremos com as inevitáveis perdas de nossa auto imagem corporal: lesões, cicatrizes, rugas, embranquecimento dos cabelos, envelhecimento.

Podemos retardar, mas não impedir esses processos: são inevitáveis porque tudo que é condicionado é impermanente (anicca). Compreendendo e aceitando esta lei fundamental, podemos gradualmente ir substituindo essa dependência para valores mais profundos, como a sabedoria, a compaixão, o afeto sem expectativa de retorno. Na Meditação da Plena Atenção treinamos o cultivo da visão clara da realidade (vipassana), percebendo e aceitando a verdade da impermanência.

Aplicamos para nossa aparência o mesmo treinamento cultivado para com a respiração: reconhecer, aceitar, investigar, não se identificar. No Satipatthana sutta, no Fundamento da Plena Atenção no corpo (kayanupassana), Buddha descreve esse treinamento no tópico sobre a contemplação das partes do corpo, dividido em 32 partes, das quais 12 se referem às partes moles do corpo e 20 às partes duras.

“Novamente, bhikkhus, um bhikkhu reflete sobre esse mesmo corpo de baixo para cima e partir da sola dos pés, e de cima para baixo a partir do topo da cabeça, limitado pela pele e repleto de diversas impurezas assim:

Existe neste corpo:

Cabelo, pêlo do corpo, unhas, dentes e pele;
Carne, tendões, ossos, medula e rins;
Coração, fígado, diafragma, baço e pulmões;
Estômago, intestino, peritônio, fezes e cérebro;
Bile, catarro, pus, sangue, suor e gordura;
Lágrima, linfa, saliva, muco, gordura das juntas e urina”.
(U Silananda, 2002, p. 178)

As cinco primeiras são as que vemos mais imediatamente: cabelo, pelo no corpo, unhas, dentes e pele. Com plena atenção, visualizando a forma, o tamanho, a cor e a localização de cada parte no corpo, contemplamos a verdade de sua impermanência, cultivando gradualmente o desapego, a não-identificação. Certa vez, após uma discussão entre um jovem casal, a mulher retirou-se para a casa dos pais, como era de costume na Índia. Nesse caminho, a bela esposa viu um monge. E prosseguiu. Pouco tempo depois, o jovem esposo, procurando-a, viu o mesmo monge e lhe perguntou se ele havia visto uma bela jovem por ali passando. Ao que o monge respondeu: vi um esqueleto passando.

Uma interpretação equivocada sobre a contemplação do corpo é a de que desapego significaria aversão ao corpo. Longe disso, aversão é uma forma de ignorância Cuidamos do corpo para mantê-lo saudável, e com o corpo saudável, cultivarmos a sabedoria da mente, que nos liberta da ignorância sobre a verdade da impermanência. Não é o corpo ou a impermanência que nos trazem sofrimento, mas sim o apego ao que é impermanente.

Retornando à reflexão sobre o esqueleto ósseo. O esqueleto ósseo faz a sustentação do corpo. E duas outras funções: reserva de minerais e formação das células do sangue:

“Os ossos contêm reserva de minerais, principalmente de cálcio e fósforo. Esses elementos químicos são fundamentais ao funcionamento das células e devem estar presentes no sangue. Quando o nível de cálcio diminui no sangue, ais de cálcio são mobilizados dos ossos para suprir a deficiência.

No interior de muitos ossos há cavidades preenchidas por um tecido macio, a medula óssea vermelha, onde são produzidas as células do sangue: hemácias, leucócitos e plaquetas. Determinados ossos possuem medula amarela, conhecida popularmente como “tutano”, constituída principalmente por células adiposas, que acumulam gorduras como material de reserva”. (Amabis & Martho, p. 424)

Aqui vamos abrir um ponto importante: como a Meditação da Pena Atenção, enquanto cultivo de uma mente equilibrada, pode influenciar positivamente na regulação harmoniosa dessas funções da reserva-mobilização desses minerais e na formação das células do sangue pela medula óssea vermelha e medula amarela? Novas pesquisas poderão trazer dados esclarecedores.

A sustentação do corpo não é apenas uma questão estática, mas também dinâmica: nossos movimentos. O esqueleto ósseo funciona conjuntamente com o sistema muscular, são dimensões interdependentes. Formado pelos músculos, constituídos de tecidos musculares, possibilitam a contração-expansão para o movimento do corpo, para o andar, correr, dobrar, respirar e tantas outras ações. A questão da dinâmica corporal é vasta e complexa: envolve aspectos psicofísicos, com a expansão espacial e mental, bem como aspectos funcionais básicos, como a processo de alimentação-excreção, a respiração, o bombeamento do sangue pelos vasos sanguíneos.

 Tudo no corpo pulsa, se move, contraindo e expandindo. Ossos, músculos, articulações, cartilagens, ligamentos, tendões: uma arquitetura dinâmica, buscando reequilíbrios, consumindo, expelindo, contatando. Na Meditação da Pena Atenção, treinamos a mente a perceber e investigar as posturas corporais. Iniciamos pelas quatro posturas básicas: sentado em pé parado, andando e deitado:
“Novamente, bhikkhus, quando caminhando, um bhikkhu reconhece: “estou caminhando”; quando em pé, reconhece: “estou em pé”; quando sentado, reconhece:
“estou sentado”; quando deitado, reconhece: “estou deitado”. Qualquer que seja a postura de seu corpo, ele a reconhece”. (U Silananda, 2002, p. 177)

Qualquer que seja a postura corporal, pressupõe algo que é anterior à dimensão física da ação: é a intenção (cetana), um fator mental presente em todos os momentos mentais. Da raiz páli citi, significa cognição, conhecimento. Todas nossas ações do corpo, da fala e da mente são precedidas por uma intenção volitiva, e o seu conteúdo determinará a qualidade saudável ou não saudável da ação. Se a intenção é de cobiça, ódio ou ignorância, a ação será não saudável; se a intenção for de não cobiça (generosidade), não ódio (amor irradiante) e não ignorância (sabedoria), a ação será saudável.

E aqui entra uma noção muito importante dos ensinamentos budistas: as ações (karma, da raiz sânscrita KR, fazer) geram frutos (vipaka), experienciados mais cedo ou mais tarde como estados mentais, saudáveis (kusala vipaka) ou aflitivos (akusala vipaka), a depender da intenção de cada ação do corpo, fala e mente. Por isso, a intenção-volição é um fator bastante importante no processo de geração dos karmas. O tema do karma (ou kamma, em páli) é vasto e complexo, por ora limitamos a estas colocações primeiras.

A intenção, partindo da mente, ativa o sistema nervoso central, que por meio de impulsos eletroquímicos, envia comandos aos nervos e estes aos músculos, e ocorre o ato de mover. Segundo as Neurociências, as ações corporais podem ser preparadas algumas de firma consciente, outras de forma inconsciente, sem nossa atenção:

“Tanto ações conscientes como inconscientes envolvem o córtex motor primário, que envia sinais de ‘ação’ que contraem os músculos (via medula espinhal e nervos motores). No entanto, enquanto movimentos inconscientes são planejados pelas áreas do lobo parietal, ações conscientes envolvem zonas cerebrais frontais ‘superiores’, incluindo os córtices motor suplementar e pré-motor. Eles também podem envolver as regiões pré-frontais, como o córtex pré-frontal dorsolateral, onde as ações são avaliadas de forma consciente. Pode se perceber os atos conscientes como resultado de uma decisão. Entretanto, áreas inconscientes do cérebro planejam e iniciam movimentos antes de resolvermos conscientemente faze-los. A “decisão”, portanto, pode ser apenas o reconhecimento consciente do que a mente inconsciente planeja executar” (O livro do cérebro, vol. 2, p.123).

Percepção sensorial, planejamento, decisão, intenção de agir, envio de comandos e ação envolvem processos complexos, aqui colocados de forma pontual e simplificada. Participa desse processo a área cerebral do cerebelo, localizado no Encéfalo, no sistema nervoso central (SNC):

“Para que o corpo execute um movimento complexo, a seqüência e a duração de cada um de seus elementos têm de ser coordenadas com precisão. Isso é controlado pelo cerebelo, por meio de um circuito que o conecta ao córtex motor. Ele também modula os sinais que o córtex motor envia subsequentemente aos neurônios motores. O cerebelo garante que quando um grupo de músculos inicia um movimento, o grupo oposto aja como um freio, para que a parte do corpo em questão atinja a meta com precisão”. (O livro do cérebro, vol. 2, p.123).

Através dos impulsos transmitidos pela cadeia dos neurônios, o comando da ação ativa os músculos. Infiltradas nas fibras musculares esqueléticas (constituída de tecido muscular estriado com proteínas actina e miosina responsáveis pela contração muscular), as terminações nervosas, ao serem disparadas, liberam um neurotransmissor denominado acetilcolina. Através da fenda sináptica conecta o nervo ao músculo, e, sob o controle da vontade, a contração muscular se realiza.

Nesse processo, o cálcio participa de modo significativo: o impulso nervoso, pelos nervos, estimula a fibra muscular, que despolariza, liberando os íons cálcio armazenados no citoplasma, que desbloqueiam os sítios de ligação da actina, que se liga à miosina, e com isso se dá a contração muscular. Quando o estímulo cessa, o cálcio é rebombeado de vota ao retículo sarcoplasmático (espécie de bolsa na fibra muscular) e cessa a contração.

Um fator fundamental nesse processo é a energia, necessária neste e em todo processo vital. A energia é suprida por moléculas chamadas ATP, produzidas na respiração celular. Sua falta leva ao enrijecimento celular. Mas a ATP supre apenas poucos segundos de atividade muscular. Complementar a ela, a principal reserva energética é a fosfocreatina. Os estoques de ATP e fosfocreatina, necessários ao trabalho muscular, são repostos pelas células musculares através da respiração celular, que usa o glicogênio como combustível (Amabis & Martho, p.434-5).

Neste quadro anatômico-fisiológico simplificado, como a Meditação da Plena Atenção pode contribuir para uma saúde mais equilibrada? Com plena atenção, treinamos a mente a se concentrar, perceber e investigar cada pequeno trecho do movimento corporal. Pode parecer óbvio que estamos sempre conscientes e atentos ao corpo quando estamos sentados, caminhando, parados ou deitados. Mas raramente estamos. Na maioria das vezes, nossa mente está imersa pensamentos distrativos, enquanto o corpo se move. Daí pisamos num buraco e torcemos o pé, caímos da escada, e sofremos e reclamamos do buraco e dos defeitos da escada.

Com plena atenção, nos aproximamos gradualmente da percepção da intenção de nossos movimentos, nos perguntando: Qual a intenção deste movimento? É necessário? Traz felicidade ou mais sofrimento? Desenvolvemos a regulação do uso de nossas energias internas, a contrapartida interna de uma ecologia saudável, tão necessária em nossos dias atuais; ao invés de sermos arrastados pela ideologia nociva da exploração desregrada das fontes de energia (em nome do “progresso material a todo custo”), não seria mais saudável o cultivo da economia de energia, simplificando a vida, usando nossas energias de modo sábio, com ênfase no desenvolvimento espiritual, na superação do sofrimento? A cobiça pela energia (interna e externa) tem subjacente a cobiça por poderes ilusórios e gera mais cedo ou mais tarde conseqüências dolorosas.

Junto ao uso sábio de nossos esforços e energias, cultivamos uma resignificação da consciência de nossos movimentos. O que significa estarmos conscientes do movimento? Significa plena atenção cada vez mais próxima da intenção de sentar (e se manter sentado, na postura meditativa), de caminhar, de ficar em pé parado ou deitar. Plena atenção em cada micro momento do ato de se mover, plena atenção em cada respiração (participando conscientemente da respiração celular que possibilita produção das moléculas ATP de energia). Plena atenção das sensações que surgem no corpo à todo momento. Plena atenção nos pensamentos distrativos, plena atenção no surgir e desaparecer de cada um desses fenômenos do corpo e da mente: isto é investigar com atenção. Para quê?

Para o cultivo da sabedoria, saúde, desapego. Para o cultivo do equilíbrio dos nossos processamentos psicofísicos (intenção mental, ativação cerebral via córtex, cerebelo, medula, ossos e músculos, respiração, circulação sanguínea). Plenamente atentos no momento presente, neste corpo. Vitalizar no movimento corporal. Se a energia é importante para a saúde do corpo e da mente, então cultivemos o hábito fundamental do exercício físico. Tônus vital. Corpo desvitalizado, alimentado impropriamente, esgotado pelo estresse de uma vida agitada, sedentária, cheia de desejos ignorantes: sofrimento se aprofundando.

Isto é o significado mais profundo dos movimentos corporais treinados, por exemplo, no Tai Chi. Na Yoga, são os asanas (posturas corporais). A palavra asana provém da raiz AS, que significa estar-existir no presente. Praticando as posturas corporais desenvolvemos várias dimensões de saúde: massagem externa, exercício dos órgãos internos, fortalecimento dos músculos através de seus alongamentos e contrações (preservando sua elasticidade), manutenção das glândulas endócrinas (Sri Ananda, 1989, p.52).

Há uma outra dimensão mais sutil de extrema importância: na meditação, ao permanecermos plenamente presentes numa postura corporal ereta, imóvel e confortável, energizamos profundamente o corpo e a mente, e treinamos a mente a perceber e não reagir impulsiva e neuroticamente às aversões e irritações que produzem agitação mental. Por que temos tanta dificuldade de nos mantermos corporalmente quietos? Porque estamos sempre, por ignorância e aversão, fugindo da sensação do desconforto físico. Fugimos da dor e corremos neuroticamente atrás dos prazeres e confortos porque temos medo do sofrimento. Mas esse hábito é fruto da ignorância sobre um fato da realidade: o corpo experimenta dores, podemos mitigá-las, mas não banirmos as dores totalmente. Tendo nascido no corpo, experimentamos a lei da impermanência do corpo, com suas dores. Mas dor não é sinônimo de sofrimento. Podemos ter um sem ter o outro. Uma fórmula bastante útil, apresentada pelo monge budista Bhante Yogavacara Rahula, diz: S= RxD. Sofrimento é igual à reatividade (resistência) vezes dor. Podemos ter dor igual a 5, mas se a reatividade é 100, teremos 500 de sofrimento. Mas se a dor for 100, e a reatividade é zero, quanto teremos de sofrimento? Zero.

Trabalhar com o corpo, compreender e aceitar seus limites, usá-lo para a libertação da mente, é o caminho da sabedoria. Portanto, treinar o corpo e a mente a estar presente dentro das posturas, acalmando e investigando as tendências reativas da mente amplia a nossa tolerância aos desconfortos e dores e conduz a grandes benefícios da saúde.

Treinando a plena atenção no corpo presente, adentramos em níveis mais profundos da mente presente. Porém, atenção ao apego, à delusão. Devemos investigar, com sabedoria e desapego, numa progressiva visão clara da verdade da impermanência dos fenômenos do corpo e da mente. Nas palavras do Buddha:
Novamente, bhikkhus, quando caminhando, um bhikkhu reconhece: “estou caminhando”; quando em pé, reconhece: “estou em pé”; quando sentado, reconhece: “estou sentado”; quando deitado, reconhece: “estou deitado”. Qualquer que seja a postura de seu corpo, ele a reconhece.
Assim ele permanece contemplando o corpo no corpo internamente, ou permanece contemplando o corpo no corpo externamente, ou permanece contemplando o corpo no corpo tanto internamente como externamente.
Permanece contemplando no corpo os seus fatores de aparecimento, ou permanece contemplando no corpo os seus fatores de dissolução, ou permanece contemplando no corpo tanto os fatores de aparecimento como os de dissolução.
A plena atenção de que “existe apenas o corpo” se estabelece. A plena atenção se estabelece apenas com a abrangência necessária para se aprofundar o conhecimento e a própria plena atenção.
Permanece despreendido de tudo que diz respeito ao apego e à visão errada. Não se apega a nada do mundo dos cinco agregados do apego.
Assim é como um bhikkhu permanece contemplando o corpo no corpo.
(U Silananda, 2002, pág.177).

O termo bhikkhu, embora geralmente se refira aos monges, aqui neste contexto significa todo aquele seriamente envolvido com a prática meditativa. Através do treinamento da meditação formal, irradiamos a atitude mental contemplativa da clara compreensão para todas as posturas corporais em nossa vida cotidiana, e cultivamos o progressivo desapego à visão errada e aos cinco agregados corpo-mente. Isto é o caminho da libertação do sofrimento.

Referências
Amabis, J. Mariano; Martho, Gilberto R. Biologia dos organismos. Vol. 2. SP: Editora Moderna, 1998.
Cadogan, Léon. Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guarani del Guairá. São Paulo: Boletim da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, FFLCCHUSP, no. 227, 1959 (Antropologia no. 5).
Cooper, J.C. An illustrated encyclopaedia of traditional symbols. London: Thames and Hudson, 1982.
O Livro do Cérebro. Vol 2. SP: Duetto, 2009.
Sri Ananda. The Complete Book of Yoga. Harmony of Body&Mind. New Delhi: Orient Paperbacks, 1989.
U Silananda, Sayadaw. The Four Foundations of Mindfulness. Boston: Wisdom Publications, 2002.


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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)

Neurociências e Saúde


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a Plena Atenção e o sistema cardio-respiratório

Arthur Shaker 

            Tomaremos como ponto de partida, nestes capítulos subseqüentes, e de modo resumido e simples, as bases fisiológicas apresentadas pelo modelo da ciência médica moderna. A motivação é oferecer ao leitor (e para uma revisão a mim mesmo), um acesso introdutório ao conhecimento fisiológico do corpo humano, e sobre essa base, examinarmos de um ponto de vista prático como a Meditação da Plena Atenção pode agir no benefício do corpo (em suas múltiplas funções) e da mente.

1. Fisiologia da respiração

            A vida das células depende fundamentalmente de energia. Uma de suas fontes é o oxigênio, obtido através da respiração celular. Podemos suportar por certo tempo a falta de comida, água e sono, mas sem oxigênio não resistiríamos por mais  de alguns pouquíssimos minutos. Uma antiga história indiana conta que, em uma discussão dos sentidos sobre qual seria a mais importante, casa sentido se retirou por certo tempo do corpo, e o corpo suportou. Tão logo a respiração se afastou, os órgãos e sentidos entraram em colapso, pedindo que ela retornasse imediatamente.

            Ocorrendo no interior de organelas citoplasmáticas (mitocôndrias), a respiração tem a função de suprir oxigênio (O2) para os tecidos e remover o gás carbônico (CO2). No metabolismo energético das células com as moléculas de gás oxigênio, a combustão produz energia térmica e energia trabalho, água (H2O) e gás carbônico. O transporte do oxigênio pelo corpo é ampliado pela existência de pigmentos respiratórios (hemoglobina e hemocianina) no sangue, que se combinam com o oxigênio. A hemoglobina é uma proteína, que contém Ferro, e ao se combinar com o O2 produz a oxiemiglobina [Hb(O2)4]; a hemocianina é uma proteína, que contém Cobre, e encontrada em moluscos e artrópodos. Caso não houvesse no sangue humano a hemoglobina, somente 2% de O2 necessário ao corpo seria transportado pelo sangue humano (Amabis&Martho, 1998, p.381).

            Neste breve introdução, podemos antever a interdependência entre o processo respiratório e o circulatório sanguíneo. Sob o ângulo da respiração externa, o ar é captado do ambiente cósmico, e através da hematose (processo de troca entre o sangue e o ar) nos alvéolos, o O2 passa do alvéolo ao sangue, combinando com os glóbulos, e o gás carbônico, após deixar o sangue e entrar nos alvéolos, sai para a atmosfera; ocorre, portanto, processos inversos de entrada de O2 e saída de CO2.

            Esses processos são possíveis devido ao fenômeno de difusão, graças às diferenças de concentração (pressões parciais). Qual um fole, o aparelho respiratório compõe-se do nariz, faringe, laringe, traquéia, brônquios, bronquíolos e pulmões. Estes possuem importante qualidade da elasticidade que lhes permitem as distensões e contrações, através de processos musculares no diafragma e intercostais, e com isso a distribuição do ar em sua captação e envio, bem como a adaptação da perfusão sanguínea dos capilares dos alvéolos com relação ao processo de ventilação dos pulmões. Filtração, umedecimento e aquecimento do ar nas fossas nasais fazem da respiração nasal a via mais adequada.

            Igualmente importante como o processo nutritivo do O2, é a eliminação do tóxico gás carbônico: cerca de 5-7% do CO2 liberado pelos tecidos dissolvem-se diretamente no plasma sanguíneo e são transportados aos pulmões para eliminação. Outros 23% se associam à hemoglobina e outras proteínas do sangue, sendo por elas transportados (...) 70% penetram as hemácias, se transformando em ácido carbônico (H2CO3) e depois se dissociam nos íons H+ (que se associam à hemoglobina e outras proteínas) e bicarbonato (que se difundem para o plasma sanguíneo), auxiliando na manutenção da acidez do sangue (...) Já nos alvéolos pulmonares o processo é inverso: os íons H+ se combinam ao bicarbonato, reconstituindo o ácido carbônico, que pela ação de um enzima (anidrase carbônica) é decomposto em gás carbônico e água. (Amabis&Martho, 1998, p.382-3).

            Esses intercâmbios e produções energéticas aparecem sob perspectivas com certas diferenças quando vistos do ângulo das medicinas tradicionais. Segundo a fisiologia da medicina moderna, é o oxigênio e seu processo de combustão com os alimentos que libera energia, que se armazena em moléculas chamadas ATP (trifosfato de adenosina), que degradados posteriormente em moléculas ADP (difosfato de adenosina) e fosfatos, fornecem a energia para os processos celulares. (Amabis&Martho, 1998, p.376).

            Na perspectiva da Yoga hindu, a sustentação da vida é dada por uma força vital chamada prana (ou chi, na medicina tradicional chinesa, e que embasa práticas corporais como o Tai Chi e o Qi Cong). Qual uma eletricidade cósmica invisível, pervasiva e sustentadora de todas as formas vivas, a força vital cósmica (referida como “Plasma cósmico” na Yoga) “não é oxigênio, hidrogênio ou nitrogênio, mas é o que dá vida a estes elementos essenciais, que mantém nossas células vivas (...) o corpo recebe a maior parte deste prana através do processo respiratório (...) Quantidades menores provém também através da comida e água, e circula por canais sutis (nadis), que permitem que as força vital chegue a todas as áreas e células do corpo (...) Esses nadis passam pelo maior nervo pléxico (na coluna). Estes nervos pléxicos estão associados a centros de energia chamados chakras, os quais têm características emocionais e psíquicas associadas a ele. (Yogavacara Rahula, 2005, p. 7-8)

            Posto isto, e embora não desconsiderando as diferenças de perspectiva e conceitos sobre a respiração, nosso foco é eminentemente prático: além do sustento do corpo físico, quais outras dimensões estão envolvidas na respiração? Como a compreensão dessas dimensões enriqueceria o diálogo entre as Neurociências (principalmente no campo das atividades do cérebro) e a Meditação da Plena Atenção, para práticas de incremento da saúde corpo-sistema nervoso-mente?

            Uma primeira dimensão é a questão do volume de O2. Em média, um homem jovem aspira e expira cerca de meio litro de ar a cada movimento respiratório, sendo o valor em média um pouco menor para as mulheres; por dia 10 mil litros de ar entram e saem dos pulmões, que absorvem cerca de 450-500 l de O2 e liberam 450-500 l de CO2.

            “O volume máximo do ar que pode ser inalado e exalado em uma respiração forçada é denominado capacidade vital, algo em torno de 4 a 5 l, para um homem jovem. Os pulmões, no entanto, contêm mais ar que sua capacidade vital, pos é impossível expirar a totalidade do ar contido nos alvéolos. Mesmo quando se foca ao máximo a expiração, ainda resta cerca de 1,5 l de ar nos pulmões; esse é o ar residual”.
(Amabis&Martho, 1998, p.386).

            Cerca de79% do ar inspirado é nitrogênio (a mesma porcentagem é expirada, pois embora necessário, o organismo só aproveita desse elemento pelo que recebe dos alimentos protêicos, através do tubo digestivo); 20.9% é O2 (14% no ar expirado, a diferença combina-se com a hemoglobina dos glóbulos vermelhos); 0,03% de CO2 (5,6% no ar expirado, provindo, pelo sangue, da combustão nos tecidos).

            A quantidade e qualidade do O2 que inspiramos, incluindo a oxigenação no cérebro, condiciona a qualidade da vida do nosso corpo. Devido à poluição urbana e aos nossos hábitos de respiração pobre e superficial, muitos distúrbios físicos e mentais decorrem. Em dois importantes sutras (ensinamentos legados pelo Buddha), que orientam a prática da Meditação da Plena Atenção (Vipassana, a meditação do insight), a respiração aparece como um dos focos estratégicos de treinamento. Como ampliar nossa capacidade e qualidade respiratória?

            Exercícios físicos são fundamentais, ainda mais considerando-se a forte tendência sedentária de nossa vida na sociedade moderna. Posturas curvadas, comprimindo o tórax e fechando os pulmões, estresse, estados mentais aflitivos e confusos levam as pessoas a terem uma respiração curta, superficial e acelerada. Práticas da respiração yóguica (os pranayamas), do T’ai Chi, do Qi Gong, da natação ou de outras formas aeróbicas visam, por um lado, aumentar a capacidade respiratória. Precisamos reaprender a respirar nas três partes dos pulmões (respiração completa chamada na Yoga de vibhaga pranayama):

            “Os pulmões têm três lóbulos principais: o inferior ou lóbulos abdominais, o médio ou lóbulos intracostais e o superior ou lóbulos claviculares. Cada um desses lóbulos afeta o fluxo da força prânica vital para uma parte específica do corpo. O ar nos lóbulos inferiores afeta o fluxo do prana para a pélvis, quadris e pernas; a respiração no lóbulo médio afeta toda a parte do tronco do corpo e os órgãos vitais ali alocados; a respiração no lóbulo superior envia para o pescoço, cabeça/cérebro e os braços. Se nós não respirarmos suficientemente nestes três lóbulos, estas partes corporais correspondentes não recebem força vital suficiente para um funcionamento conveniente. Como resultados, muitos problemas associados podem surgir.

            É fato que a maioria das pessoas, em condições normais, respira usando apenas um décimo da capacidade pulmonar; usualmente apenas uma pequena porção nos lóbulos inferiores e médios. Raramente o ar chega até os lóbulos superiores, a não ser que se esteja fazendo um forte esforço. (...) Por causa da respiração curta e superficial, o corpo precisa respirar rapidamente, de modo a trazer mais oxigênio para manter as células vivas. De um ponto de vista da yoga, isto não é saudável. A respiração saudável é a lenta, profunda e completa, a qual irriga uniformemente todo o corpo (incluindo o cérebro) com ondas suaves de eletricidade cósmica. O ritmo ideal de respiração é: quatro a oito segundos para inspirar nos três lóbulos, prender a respiração por três segundos (para permitir a completa absorção do oxigênio no sangue), permitindo a expiração entre quatro e oito segundos, e pausando entre um e dois segundos antes de inspirar novamente.

            Treinando-se a respirar desse modo, mesmo que por três ou cinco minutos, permite trazer mais oxigênio e força vital, e melhor distribuição pelo corpo de uma maneira mais relaxada e branda. Como resultado, o ritmo da respiração e do coração diminui. Esta é uma das principais razões pela qual os yogis praticam a respiração pranayama – para regular, purificar e diminuir a respiração, de modo a facilitar a prática da meditação profunda. Respirar nesta maneira regular também ajuda, enquanto uma técnica inicial de concentração, a trazer a atenção para dentro, tirando a mente do mundo exterior e dos nossos pensamentos. (Bhante Rahula, 2005, p. 9-10)

            Existe uma conexão íntima entre a respiração e os estados mentais. Respirações aceleradas e superficiais tendem a produzir estados mentais aflitivos, angustiantes, e vice versa. Angústia provém de angustus (estreitamento), angere (apertar), e tende a ser experienciado na região da garganta e epigástrica (região superior do ventre) como um aperto-sufôco. O problema é que raramente percebemos essas manifestações de sofrimento físico em nosso próprio corpo. O corpo envia sinais, mas estamos cegos e surdos, porque a mente está quase sempre desconectada do corpo, dispersa em pensamentos e focada nos objetos exteriores. Por isso, para a reversão dessa tendência, o desenvolvimento da qualidade mental da Plena Atenção (sati) é importante. E a respiração é um dos valiosos focos do treinamento. Isso também porque a respiração é um fenômeno universal, que independe de ideologia, crenças religiosas ou laicas. Todos respiramos, ela está sempre ali presente, é sensorialmente simples de contatarmos. É a base da vida do corpo, do cérebro e da mente, e está intimamente vinculada aos estados mentais, como um censor refinado.

            A própria ampliação da capacidade respiratória se beneficia do treinamento da Plena Atenção, pois a Plena Atenção ajuda o cérebro a fixar pouco a pouco os novos padrões respiratórios desenvolvidos nos treinamentos aeróbicos. Isto nos remete a um outro aspecto importante: a determinação dos padrões cerebrais, tanto em termos da capacidade pulmonar quanto no importante aspecto do ritmo respiratório. Esquecemos de viver segundo ritmos saudáveis, incluindo os ritmos respiratórios saudáveis. Muita oxigenação, mas em ritmos desarmoniosos pode ser tão prejudicial quanto baixa oxigenação. A modulação do ritmo respiratório também é condicionada e viabilizada pelo treinamento da Plena Atenção.

            É verdade que, por um lado, a inervação respiratória é regida por impulsos nervosos emanados do sistema nervoso, e, segundo os livros de Fisiologia, esse processo independeria da nossa vontade:

            “O centro nervoso que controla a respiração localiza-se na medula espinal. Em condições normais, o centro respiratório medular produz, a cada 5 segundos, um impulso nervoso que estimula a contração da musculatura torácica e do diafragma, fazendo-nos inspirar.

            Quando nos exercitamos, as células musculares passam a respirar mais, produzindo assim, maior quantidade de energia apara a contração dos músculos. O aumento da respiração celular leva à liberação de maiores quantidades de gás carbônico, aumentando o nível de acidez do sangue. A acidez estimula o centro respiratório medular, levando ao aumento dos movimentos respiratórios.

            Se houver diminuição pronunciada da concentração de gás oxigênio no sangue, o ritmo respiratório também é aumentado. A diminuição no teor de gás oxigênio é detectada por receptores químicos localizados nas paredes da aorta e da artéria carótida. Esses receptores enviam, então, mensagens ao centro respiratório medular para que este aumente o ritmo respiratório”. (Amabis&Martho, 1998, p.386).

            Por outro lado, no Sistema Nervoso Periférico Autônomo, o sistema simpático e parassimpático participam nesse processo de mobilizar energias e atividades relaxantes, o que pode indicar que o treinamento da Plena Atenção pode recondicionar, até certo ponto, pela vontade consciente, um novo padrão respiratório mais saudável. E, também, pela Plena Atenção, estamos mais próximos dos sinais da respiração, podendo acalmá-la e retrazê-la a níveis e ritmos harmônicos e serenos. Podemos experienciar o quanto o relaxamento do corpo através da respiração consciente traz benefícios à saúde do corpo, do cérebro e da mente.

            Respiração consciente. Significa cultivar a qualidade mental da Plena Atenção focada na respiração, que por sua vez significa cultivar a vontade-decisão (chanda), outra importante qualidade da mente. Como na maior parte do tempo nossa mente está dispersa, emaranhada nos objetos exteriores ou pensamentos distrativos, muita energia é desperdiçada nesses estados distrativos.

            Um dos temas atualmente em foco é o dos recursos de energia planetária. O represamento dos rios para as hidroelétricas, a exploração do petróleo, as usinas nucleares trazem muitas questões sobre o equilíbrio da terra. Pensamos soluções de energias sustentáveis, mas quase sempre no princípio de expansão da exploração das fontes energéticas para o desenvolvimento da produção material, mas por razões de cobiça econômica, pouco se implementa na substituição por energias renováveis menos deletérias, como a energia solar e eólea. E, raramente, se reflete sobre a redução da dependência às energias materiais.

            Isto tem significações importantes sobre a ecologia em seu duplo aspecto: a externa (o crescente apego da mente aos bens de consumo que tornam a vida mais confortável, esquecendo que isto tem um peço sobre a ecologia do planeta) e nossa ecologia interna. Este apego, além de nos tornar crescentemente dependente e aumentar esse apego-cobiça na mente, reforça o dispêndio infrutífero de nossa energia mental. Ao invés de buscarmos nossa fonte de riqueza e felicidade em nosso íntimo mental, moderando nossa cobiça-dependência aos recursos externos, projetamos e corremos atrás dos objetos externos asa custas de boa parte de nossa energia mental, e, o que é trágico, numa busca que amplia as conseqüências danosas para o corpo e a mente, com o estresse e outros sintomas de sofrimento. Pouco se fala sobre a necessidade de contenção, no caso, a contenção dos sentidos e suas voracidades insaciáveis. Compreender essa dinâmica é base para o redirecionamento da vontade. Isso nos traz de volta ao tema da respiração consciente.

            Assim se inicia um dos importantes ensinamentos do Buddha sobre o treinamento da plena atenção, no Maha Satipathana sutra, os Fundamentos da Plena Atenção:

            “Assim eu ouvi:
Certa ocasião, o abençoado estava vivendo entre os kurus em um vilarejo chamado Kammasadamma. Lá o Abençoado se dirigiu aos bhikkhus dessa maneira: “Bhikkhus”, e os bhikkhus responderam: “Venerável”. Então, o Abençoado falou:
Bhikkhus, este é o único caminho para a purificação dos seres, para superar a tristeza e a lamentação, para o desaparecimento da dor e do pesar, para alcançar o Nobre Caminho, para a realização do nirvana, isto é, os Quatro Fundamentos da Plena Atenção.
Quais são eles?
Neste ensinamento, bhikkhus, um bhikkhu permanece contemplando o corpo no corpo de forma ardente, atento e com clara compreensão, removendo a ganância e o pesar pelo mundo. Ele permanece contemplando a sensação nas sensações de forma ardente, atento e com clara compreensão, removendo a ganância e o pesar pelo mundo. Ele permanece contemplando a consciência na consciência de forma ardente, atento e com clara compreensão, removendo a ganância e o pesar pelo mundo. Ele permanece contemplando o Dhamma nos objetos mentais de forma ardente, atento e com clara compreensão, removendo a ganância e o pesar pelo mundo.” (U Silananda, 2002, p. 175-6)

            O sutra se abre apresentando a sintomática a ser superada (a tristeza e a lamentação, para o desaparecimento da dor e do pesar, para alcançar o Nobre Caminho), e o treinamento para a superação, através da plena atenção aos quatro fundamentos-focos da prática: o corpo, as sensações, a consciência e os objetos mentais. Ou seja, os cinco agregados, que compõem nossa experiência humana existencial. Embora o termo bhikkhu se refira usualmente aos monges, nesse contexto se aplica a todo aquele que busca a superação do sofrimento pela transformação das tendências mentais não-saudáveis.
Começando com a contemplação do corpo no corpo.
Contemplação significa ver/investigar a natureza do corpo como ele é, pois tendemos a ver o corpo com uma percepção distorcida: como algo sempre prazeroso, como algo que nos pertence, como algo que deveria ser permanente, à serviço de nosso confuso e imaginário modelo de felicidade.
O treinamento se inicia com o foco da plena atenção na respiração, após ter colocado o corpo na postura sentada ereta. A postura ereta tem qualidades psicofísicas importantes para o treinamento da plena atenção, pois ela é a que permite um melhor fluxo energético e respiratório:
Bhikkhus, como um bhikkhu permanece contemplando o corpo no corpo? Aqui, um bhikkhu dirige-se a uma floresta, ao pé de uma árvore ou a um local isolado, senta-se com as pernas cruzadas, mantém o corpo ereto e dirige a plena atenção na direção do objeto de meditação. Sempre atento, inspira; sempre atento, expira.
Ao fazer uma inspiração longa, reconhece: “faço uma inspiração longa”; ao fazer uma expiração longa, reconhece: “faço uma expiração longa”.
Ao fazer uma inspiração curta, reconhece: “faço uma inspiração curta”; ao fazer uma expiração curta, reconhece: “faço uma expiração curta”.
            Treina a si mesmo: “inspiro vivenciando todo o corpo da respiração”; treina a si mesmo: “expiro vivenciando todo o corpo da respiração”.
            Treina a si mesmo: “inspiro tranqüilizando as funções do corpo”; treina a si mesmo: “expiro tranqüilizando as funções do corpo”. (U Silananda, 2002, p. 176-7)

No treinamento da meditação da plena atenção, não induzimos a respiração. “Ao fazer uma inspiração/ expiração longa ou curta” significa que cuidamos apenas de reconhecer qual é a qualidade da respiração a cada momento. Para isso, treinamos a concentração (sustentação do foco da mente no objeto respiração) e a plena atenção (investigando as qualidades do objeto, e retrazendo o foco sempre que notarmos a fuga distrativa do foco na respiração). No momento da meditação não induzimos exercícios respiratórios, mas a qualidade de nossa respiração condicionará muito a qualidade dos frutos de nossa prática meditativa, pelas razões que já nos referimos anteriormente. Respirações deficientes enfraquecem o corpo e as possibilidades mentais da concentração e plena atenção necessárias para penetrar e transformar os padrões mentais não saudáveis. Desenvolver a qualidade respiratória é importante e corre paralelo ao treinamento mental. Por isso, três grandes fatores do cultivo sadio devem ser incentivados: o controle e regulação da respiração, a vitalidade nos movimentos e posturas corporais e o controle da mente. São benéficas as práticas como o Hatha Yoga, T’ai Chi e por extensão as várias opções aeróbicas como a natação. Qi Gong, etc.

Neste balanceamento corpo-mente, o ritmo respiratório tem efeitos evidentes sobre os vários sistemas corporais. Não é por acaso que as ciências tradicionais tinham no ritmo um destaque marcante. É da apalavra “ritmo” que derivava a Aritmética, ciência dos ritmos contidos nos números, objeto de investigação de Pitágoras, ciência que se perdeu e se reduziu a operações apenas quantitativas; talvez por isso a Matemática seja hoje uma fonte de sofrimento para muitos estudantes, pois a lógica profunda dessa ciência se tornou opaca aos nossos olhos.

Respiração consciente rítmica. Do ponto de vista fisiológico, a respiração ritmada traz uma harmonia no funcionamento interdependente dos sistemas corporais, pois todo o corpo vive segundo processos rítmicos, pulsações de vibrações sutis de expansão e contração: o sangue enviado pelo coração até as extremidades do corpo – recolhido de volta ao coração; o ar inspirado nos pulmões – enviado pelo sangue às células – recolhido de volta aos pulmões; as correntes sinápticas no cérebro; os fluxos hormonais.
            A respiração regular e profunda é essencial para a saúde do sistema nervoso, do cérebro, e das glândulas endócrinas, e segundo a ciência yóguica, o Prana no ar que respiramos preenche diversas funções no corpo humano, cada qual com seu nome específico:
“Prana – (aqui o termo geral ganha um significado específico) circula na área em volta do coração e controla a respiração.
Apana – circula nas partes inferiores do abdômen e controla as funções excretoras (urina e fezes).
Samana – estimula os sucos gástricos, facilitando assim a digestão.
Udana – permanece na caixa torácica, controla a absorção do ar e alimento.
Vyana – difunde-se pelo copo e distribui a energia do alimento e respiração.
Naga – alivia a pressão abdominal provocando o arroto.
Kurma – controla as pálpebras para prevenir a entrada de corpos estranhos e luz forte que ferisse os olhos.
Krkara – previne a entrada de certas substancias pelas cavidades nasais ou descendo pela garganta, causando espirro e tossimento.
Devadutta – garante a absorção de oxigênio suplementar para o copo cansado, causando o dilatamento.
Dhanamjaya – permanece no copo, mesmo após a morte, e algumas vezes faz o cadáver inchar”. (Sri Ananda, 1989, p. 30-31)

Respiração e sistema circulatório
            Composto pelo sangue, vasos sanguíneos e o coração, o sistema circulatório tem a função de transportar nutrientes, hormônios, células e anticorpos do sistema imunológico e oxigênio [removendo o gás carbônico e as excreções (como a uréia, a amônia, etc.)]. O sangue humano é constituído de plasma (água 92%, proteínas [como a gamaglobulina, que constituem os anticorpos; fibrogênio, para a coagulação], sais, nutrientes, gases, excreções e hormônios), hemácias (glóbulos vermelhos, produzidos no interior dos ossos, para o transporte do O2) e os leucócitos (glóbulos brancos, para a defesa do corpo).
            Dos capilares sanguíneos, extravasa líquido sanguíneo (fluido tissular) que oxigena as células próximas aos capilares; o fluido tissular capta CO2 e excreções e é reabsorvida pelos capilares e volt ao sangue pelas veias, agora pobre em nutrientes e O2 e rico em CO2 e excreções. Válvulas nas veias impedem o refluxo do sangue e garantem sua circulação em um único sentido. O excesso de líquido tissular é captado entre as células dos tecidos pelo sistema linfático, em cujo interior de seus vasos circula a linfa (constituição semelhante à do sangue, mas não contém hemácias), que contém glóbulos brancos (99% de linfócitos, um tipo de leucócito que no sangue é 50% dos glóbulos brancos). A linfa circula por gânglios linfáticos, onde é filtrada; nesses gânglios, linfócitos fagocitam vírus, bactérias e resíduos celulares, através de um processo de multiplicação ativa e combate para a defesa do corpo.
            Por meio de uma extensa rede capilar, o sangue vai, através da artéria, aos pulmões, recebe O2, volta ao coração pelas veias pulmonares, e através das artérias, esse sangue arterial, rico em O2, é bombeado para todo o corpo; de lá o sangue venoso, pobre em O2, volta pelas veias ao coração. Através de impulsos elétricos, células musculares especializadas (nódulo sinoatrial e nódulo atrioventricular, localizados no coração) controlam a freqüência do batimento cardíaco, num incessante processo de contrações e relaxamentos (sístole-diástole) das câmaras cardíacas.
            Este bombeamento opera segundo pressões exercidas pelo sangue contra as paredes arteriais (pressão arterial), em pulsações de contração e distensão, regulando os volumes de sangue enviados e as pressões que permitem enviar o sangue e relaxar a pressão interna, e quando a pressão sanguínea diminui, a musculatura arterial se contrai, equilibrando a pressão, e assim sucessivamente (Amabis&Martho, 1998, p.358-368).

            Como plena atenção-respiração-circulação sanguínea se inter-influenciam?

            A plena atenção na respiração tem íntima conexão com a qualidade da circulação sanguínea. Quando meditamos tendo o foco na respiração, a tendência é de acalmar a respiração, que vai se tornando mais breve, profunda e consciente. Isso leva à diminuição da tensão cardíaca, e com isso, a um certo equilíbrio na pressão sanguínea. É possível usar o batimento cardíaco como foco da atenção, com os mesmos efeitos benéficos. Por outro ângulo, a plena atenção, ao possibilitar uma certa desaceleração e arrefecimento das tensões emocionais, atua na desaceleração do ritmo cardíaco quando desritmado (hipertensão). Isto devido a um importante ponto: o ritmo cardíaco é interdependente com a respiração, mas por sua vez o ritmo cardíaco depende dos impulsos elétricos do nódulo sinoatrial (chamado também de marcapasso), que por sua vez está ligado à ação reguladora da área do Sistema Nervoso Central chamada medula oblonga (bulbo raquidiano): “Esta região , chamada de medulla oblongata, conecta a medula espinhal ao cérebro e contém aglomerados de células ou núcleos que controlam funções críticas como pressão sanguínea, batimentos cardíacos e respiração” (Ramachandram, 2004, p.32). Localizado no tronco encefálico, “o bulbo (...) abriga grupos de núcleos que são centros para o monitoramento e controle respiratório, cardíaco (freqüência cardíaca) e vaso motor (pressão arterial), assim como para o vômito, o espiro, a deglutição e a tosse”. (O livro do cérebro, 1, p.63).
            A medula oblonga, por sua vez, é influenciada pelo sistema nervoso periférico autônomo (simpático e parassimpático), através do nervo vago. Há uma complexa e vasta interconexão do sistema nervoso com o sistema respiratório e circulatório, mas de todo modo, observa-se na prática da meditação da plena atenção efeitos saudáveis da tranquilização da mente sobre o processo cardio-respiratório, em virtude das interrelações entre os estados mentais-atividades cerebrais-processos respiratórios e circulatórios.
            Ainda que as pulsações respiratórias e cardíacas aconteçam em boa parte como impulsos involuntários, relatos de meditadores experientes mostram que há uma influência positiva da qualidade mental da vontade consciente nesses processos. Estas relações merecem pesquisas científicas mais acuradas. O grau e qualidade da participação da vontade consciente devem variar de acordo com múltiplos fatores pessoais (histórico, fase da vida, tempo de prática meditativa, etc.) Além disso, tensões emocionais tendem a descarregar adrenalina no sangue, para o enfrentamento de situações de estresse, estimulando a aceleração cardíaca e respiratória, e o aumento da pressão sanguínea e da concentração de açúcar no sangue. Reiteradas descargas de adrenalina tendem a levar o organismo a um desgaste danoso. Observa-se que, depois das doenças de origem neuropsíquica (como a depressão, adicções em alcoolismo, drogas, etc.), as doenças de ordem cardiovasculares e respiratórias ocupam o segundo e terceiro lugar.
            As chamadas “doenças” podem ser vistas como sinais-alertas de desequilíbrios na harmonia corpo-mente. E não será que esta harmonia teria graus ou níveis, de acordo com uma vida mais próxima, ou afastada, de um horizonte espiritual mais profundo de significações da condição humana? Assim, as “doenças” seriam alertas funcionais para revermos e realinharmos nosso modo vida físico e mental a uma perspectiva mais genuína, espiritual. As doenças do aparelho circulatório (como a arteriosclerose, infartos, hipertensão) e respiratório (rinite, asma, bronquite, etc.) poderiam ter na Meditação da Plena Atenção certo suporte para, se não sua superação completa, certa diminuição de sua destrutividade, e um melhor lide.
            A meditação da plena atenção não deve ser vista como uma panacéia mágica que cura tudo, visto que há determinações de causa múltiplas nos problemas corporais, mas o princípio básico é o da interconexão entre essas dificuldades do corpo e os estados da mente. E este é o foco central do treinamento meditativo: os padrões mentais não-saudáveis, que estão na base do funcionamento do sistema nervoso e demais sistemas do nosso corpo.

Preparando-se para meditar
            Coloque-se numa postura corporal confortável, seja sentado numa almofada com as pernas cruzadas, seja num banquinho ou na cadeira.
            Sobre essa base, coloque a coluna ereta, mas sem tensões desnecessárias. As mãos podem estar descansando nos joelhos, ou em forma de concha, as costas de uma mão sobre a palma da outra, os polegares se tocando levemente.
            Alinhe a cabeça com a coluna, de modo a ficar com o queixo paralelo ao chão. Boca fechada, respiração pelas narinas, olhos levemente abertos sem nada fixar fora, ou simplesmente fechados, porém sem cair em sonolência.
            Relaxe todo o corpo, fazendo algumas respirações longas, lentas e profundas, nas três partes dos pulmões, energizando corpo e mente.
            Deixe de lado, durante a prática, seus problemas cotidianos; ofereça a si mesmo o tempo da prática para seu desenvolvimento interior.
            Faça um compromisso de não deixar a mente fugir para o passado, que já se foi, nem se projetar para um futuro, que ainda não existe. Tudo que temos é o momento presente, neste corpo, nesta mente, aqui e agora.
            Traga um ensejo de bondade-amizade amorosa para com você. Podemos usar silenciosamente breves palavras: “Que eu esteja bem, sadio e pacífico”. Estenda o mesmo ensejo para todos os seres: “Que todos os seres, sem exceção, estejam bem, sadios e pacíficos”.
            Traga a atenção da mente para o foco da respiração no abdômen. Procure fixá-la nesta área, atento à expansão-contração do abdômen a cada inspiração e expiração.
            Sempre que perceber que a mente fugiu em pensamentos distrativos, imagens, memórias, não se irrite. Faça uma notação mental silenciosa: “Pensando, pensando”. Relaxe, acolha, aceite. Não se envolva com eles, não é necessário analisá-los. Deixe-os ir, são apenas distrações, como bolhas ou nuvens. Faça uma pausa, e com gentileza, traga a atenção da mente de volta para sua respiração.
            Quando puder, procure colocar a atenção nas batidas do coração. Veja o que você percebe sobre seu ritmo cardíaco. Como é? É constante, varia? Relaxado? Tenso?
            Perceba o que acontece com sua respiração, momento a momento. Perceba como ela muda incessantemente. Compreendendo que ela é impermanente, cultive um estado mental de desapego.
            Reveja o conteúdo deste capítulo. Anote as dúvidas, procure as respostas esclarecedoras, pesquisando ou perguntando a quem possa lhe responder. Cuide de si mesmo/a.


Referências

Amabis, J. Mariano; Martho, Gilberto R. Biologia dos organismos. Vol. 2. SP: Editora Moderna, 1998.
Analayo. Satipatthana. The Direct Path to Realization. Cambridge: Windhorse Publications, 2008.
Fleischman, Dr. Paul R. The Therapeutic Action of Vipassana. Kandy: Buddhist Publication Society Inc, 1990.
Henepola Gunaratana, Bhante. Os Quatro Fundamentos da Plena Atenção. São Paulo: Casa de Dharma, 2012.
_______________ Mindfulness in Plain English.  Boston: Wisdom Publications, 2002.
O Livro do Cérebro. Vol 1. SP: Duetto, 2009.
Sri Ananda. The Complete Book of Yoga. Harmony of Body&Mind. New Delhi: Orient Paperbacks, 1989.
U Silananda, Sayadaw. The Four Foundations of Mindfulness. Boston: Wisdom Publications, 2002.
Yogavacara Rahula, Bhante. A Fisiologia da Meditação. (tradução: Arthur Shaker, SP, Casa de Dharma. www.casadedharmaorg.org) The Bhavana Magazine, vol. 6 no. 1, Inverno 2005, USA.
  
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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências e Saúde


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A Meditação à luz das Ciências modernas
e os paradigmas das Medicinas  
Arthur Shaker 

            Iniciemos nossa explanação apresentando alguns dados trazidos por pesquisas científicas atuais sobre os efeitos da prática da meditação na saúde humana.

            Em 2002, cientistas da Faculdade de Medicina de Harvard demonstraram a melhora da memória de idosos saudáveis que desenvolviam o treinamento de atividade de atenção e relaxamento. O grupo de cientistas orientado por Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin, em 2003, observou o aumento do número de anticorpos em pessoas meditantes por oito semanas após vacinação contra gripe, em relação ao grupo de controle. Com o uso de imagens de ressonância magnética, pesquisa dirigida em 2005 por Sara Lazar, do Hospital Geral de Massachussets, evidenciou que a meditação aumenta as espessuras do córtex pré-frontal cerebral (área ligada ao planejamento de comportamentos cognitivos complexos) e da ínsula direita (ligada às sensações corporais e às emoções), significando que a meditação tem a ver com alterações na estrutura física do cérebro (Revista Época, 04/04/2011).

            Como esses processos neurais e mentais se interdeterminam? A resposta a esta pergunta tem subjacente uma outra pergunta complexa: o que é o corpo humano? Ou seja, sob qual paradigma se conceitua esse objeto que chamamos de “corpo”? Pode parecer uma questão diletante ou de resposta óbvia, mas de fato implica o exame do próprio modo de se construir uma visão científica. Se abrirmos o campo da pesquisa, vemos que as culturas humanas referem-se ao corpo de modos diversos, e em virtude desses mapeamentos diferentes, os diagnósticos sobre as doenças e, por conseqüência, as terapêuticas preventivas e curativas apresentarão diferenças, e não raro, divergências. Não é propósito deste artigo adentrar muito por esta questão, mas algo sobre isso merece ser apontado em algumas linhas gerais. Escolheremos apresentar três perspectivas paradigmáticas: o da medicina moderna, o da medicina hindu e o da medicina tradicional chinesa.


Os paradigmas da medicina moderna

            Este paradigma nasce dentro do contexto dessa própria sociedade e por ela condicionada mentalmente, ou seja, o percurso de suas proposições tem muito a ver com a mentalidade e a história dos percursos da sociedade ocidental pós-medieval. Seria até interessante recuar para pesquisar quais concepções de corpo-saúde-doença embasavam a medicina medieval ocidental, certamente fortemente relacionada à visão do Cristianismo, mas seria ampliar demais o escopo deste artigo.

            À grosso modo, podemos dizer que o paradigma da medicina ocidental pós-medieval caminhou na direção de um modelo de sistema: o corpo seria um sistema composto de vários subsistemas articulados, cada qual responsável por certas funções, tendo por objetivo sustentar a vida do corpo, em seu duplo aspecto: interno e externo ( a relação com o meio ambiente que circunda o corpo). Além de sustentar a vida, a manutenção da sobrevivência, arraigada no chamado “instinto de sobrevivência”, o corpo também seria movido por certo impulso evolutivo de maior aperfeiçoamento pela presença de um cérebro mais complexo na espécie humana. Interessante observar como a concepção evolucionista darwiniana, também surgida com a sociedade moderna ocidental, é trazida para dar suporte explicativo a este modelo de corpo. Como o corpo empiricamente evidencia ser uma realidade dinâmica, construiu-se dois ângulos básicos de codificação neste modelo: uma Anatomia descritiva estática das funções a serem realizadas pelos vários subsistemas e uma Fisiologia  dinâmica dos processos reais desses sistemas.

 Se tomarmos um livro introdutório básico de Biologia, encontramos de início o tema sobre como classificar os organismos vivos, tarefa da Taxonomia. Usando o critério das semelhanças, e vindo de uma herança grega de Aristóteles (séc. IV a.C.), que classificava os animais em aéreos, terrestres e aquáticos, passando por Santo Agostinho (séc. IV d.C.), em sua classificação dos animais em úteis, nocivos e indiferentes (em relação aos seres humanos), caberá ao naturalista sueco Lineu (séc. XVIII) o sistema de classificação segundo suas características intrínsecas, e publicado no livro Systema Naturae, que serve de base até hoje.

Lineu escolheria como principal critério a estrutura e anatomia dos seres vivos, ou seja, o plano de organização corporal. E se inclui hoje as semelhanças e diferenças na composição química das proteínas e genes (Amabis & Marto, p.5-6). Como categoria taxonômica básica temos o conceito de espécie (do latim species, tipo) como “o conjunto de seres semelhantes capazes de se cruzar em condições naturais, deixando descendentes férteis” (Amabis & Martho, p.6). Espécies, gêneros, famílias, ordens, classes, filos e reinos constituem os termos classificatórios em graus de abrangência, cabendo ainda a Lineu a proposição do uso de uma nomenclatura binomial, designando o gênero e a espécie. Do agrupamento aristotélico dos reinos em reino animal e vegetal, acrescentou-se com Haeckel os reinos Protista e Monera, e posteriormente com Whittaker o reino Fungo (Amabis & Martho, p.7-9). E, na base desse esquema, a concepção da evolução biológica, em que todos os organismos proviriam de organismos unicelulares que teriam surgido há alguns bilhões de anos, se modificando, diversificando, e selecionados pela chamada “lei da seleção natural”, em que a adaptação de sucesso na luta pela sobrevivência selecionaria as transformações mais vitoriosas, as quais levariam à progressivas mutações e surgimento de novas espécies. O que, ao longo desses milhões de anos, evidenciaria um processo de progresso nas estruturas dos organismos, ocupando a espécie humana o topo dessa linha ascendente, graças a mudanças de sua estrutura cerebral, que lhe permitiria operações cognitivas mais complexas.

Ainda nesta perspectiva, vamos encontrar nos livros básicos de Biologia o modelo do corpo humano proposto segundo vários sistemas funcionais: sistema digestivo, sistemas circulatórios, respiratório, sistemas controladores do meio interno (osmoregulação e excreção), sistema de proteção, suporte e movimento (pele, ossos e músculos), sistema endócrino, sistema nervoso, sistema de percepção sensorial, sistema imunitário e reprodutor (Amabis & Martho, op.cit). Interessante observar que a construção deste modelo em muito acompanha o processo sóciomental da civilização ocidental pós-medieval: a construção de um modelo à semelhança de uma máquina, engenho composto de sistemas mecânicos que se articulam para realizar funcionalmente um propósito. Sistema e função seriam as duas noções básicas desse modelo. Esta concepção aparece também em uma das proposições analíticas da Antropologia funcionalista de Bronislaw Malinowski, com a qual pretendeu compreender a estrutura de funcionamento das sociedades humanas.

Não parece coincidência que esta visão denote uma concepção de estrutura  enquanto sistemas, de órgãos no caso do corpo, foco da Anatomia, e função enquanto motivador vital (sobrevivência e evolução-progresso), da dinâmica da estrutura, o campo da Fisiologia.  E viabilizando a passagem da estrutura para o funcionamento, a noção de “articulações”, espécie de “áreas” de superação entre a rigidez estática das estruturas-sistemas e a necessidade-evidência do dinamismo. Seria coincidência essa migração, para este modelo de corpo humano, de conceitos-base da Engenharia mecânica, mola propulsora do industrialismo desencadeado pela civilização ocidental capitalista pós-medieval?

Os paradigmas gerais da Medicina hindu

A compreensão do funcionamento e eficácia de uma medicina tradicional como a hindu exige entendermos a visão mais ampla em que esta civilização se fundamenta, na qual suas práticas de cura se desenvolvem.

O primeiro aspecto é a percepção de que se trata de uma civilização tradicional, termo que designa os povos em que toda sua visão de mundo e sua prática estão fundadas em bases metafísicas. Significa que sua existência está conectada com o Transcendente. Sem compreender esta conexão é impossível entendermos estas civilizações como a hindu. Sem isto elas se tornam sem sentido.

A civilização hindu entende ser sua origem e a de todo universo como sendo divina, e é isto que significa Tradição, cada aspecto da vida terrestre tem um nexo celeste. Sua origem, sendo divina, é supra-humana, apaurushêya (na língua sânscrita).

A base da civilização milenar hindu são os Vêda (da raiz Vid, conhecer), conhecimento trazido por seus fundadores míticos há pelo menos 4.000 atrás. Escritos básicos da tradição hindu, formam os quatro livros: Rig-Vêda, Yajur-Vêda, Sâma-Vêda e Atharva-Vêda. A sabedoria contida neste conjunto de livros forma a doutrina básica da tradição hindu, tendo os Vêda um conjunto de ciências auxiliares chamadas Vêdânga, “membro do Vêda”, como a ciência da pronunciação, a gramática, astrologia e outras. Além disso, se acresce os conhecimentos secundários, os Upavêdas, dos quais faz parte o Ayur-Vêda, “Ciência da Vida”, a medicina, ligada ao Rig-Vêda e ao Atharva-Vêda.

            Toda sabedoria hindu pode ser compreendida segundo os seus seis pontos de vista, darshanas. Um deles é o Yoga. Podemos dizer que a medicina hindu tem no Ayur-Vêda e no Yoga seus pilares básicos, por sua vez fundados nos Vêda. O Ayur-Vêda contém um conjunto de receituários de ervas, plantas e ritos invocatórios e propiciatórios visando a cura das doenças, buscando atuar no plano corporal, mental e espiritual. As práticas de recitação dos mantras de cura, ligados ao Atharva-Vêda, são tão fundamentais para a cura quanto as concomitantes práticas químico-físicas de sua medicina tradicional. Complementariamente, o Yoga, sistematizado posteriormente nos Yoga-Sûtras de Patãnjali, oferece uma prática corporal e mental de equilíbrio, o Hatha-Yoga, através dos exercícios de postura (asanas) e ritmos respiratórios (pranayama), preparatórios para a realização espiritual, tarefa da meditação do Raja-Yoga.  Também no Yoga, embora seus efeitos possam ser procurados apenas para o bem-estar, não se desconecta o corporal do psíquico e do espiritual. A realização espiritual, união (Yoga) com o Absoluto, é o pilar e a meta maior da tradição hindu.

O termo Ayur provém de Ayú, “vivente, movente, homem, seres vivos coletivo, filho, linhagem, vida, duração de vida”. Da raiz verbal I, “ir, andar, fluir, soprar, espalhar, passar, escapar, surgir de, vagar”, denota os sentidos de fluxo, vir-a-ser. A saúde em seu dinamismo e impermanência. Voltaremos mais adiante a estes importantes significados.

A medicina Ayurvédica tem oito áreas:
1.      Salya tantra: retirada de qualquer substância que entro no corpo (como extração de dardos, lascas, etc.), de certo modo afim com as práticas indígenas da pajelança, ou de um tipo de cirurgia, segundo visão tibetana.
2.      Salakya tantra: cura das doenças da cabeça e pescoço pelos Salakas ou instrumentos afiados.
3.      Kaya-cikitsa: cura das doenças que afetam todo o corpo (medicina interna, segundo a interpretação tibetana).
4.      Bhuta-vidya: tratamento das doenças mentais produzidas por más influências ocultas (controle dos ataques por espíritos malignos e outras desordens mentais).
5.      Kaumara-bhritya (Bala tantra): tratamento das crianças (Pediatria).
6.      Agada-tantra: doutrina dos antídotos (Toxicologia).
7.      Rasayana-tantra: doutrina dos elixires e rejuvenescimento (Geriatria)
8.      Vajikarana-tantra: doutrina de revitalização sexual.

A medicina Ayurvédica vê na doença o resultado das impróprias proporções dos
Tridoshas (os três humores). Na medicina tibetana, este desequilíbrio é visto como “aflição” no nível primordial, e “desordem” no nível manifesto imediato. Ainda na perspectiva médica tibetana, todos os seres não iluminados seriam afligidos pelas imperfeições dos três venenos fundamentais (Dug-gsum): o Ego ou bDag-‘zin, manifesto na forma de gTi-mug, ilusão, ignorância, confusão, que por sua vez produz apego, gula, desejo, ‘Dod-chags, e Zhe-sdang, ódio, aversão, agressão. O médico, na perspectiva tibetana, tratará a desordem causada por dietas impróprias, comportamento e fatores ambientais, usando várias dietas, orientações comportamentais, remédios e outras terapias. Mas o objetivo básico é escapar do ciclo mundano e imperfeito da existência e alcançar liberação dessas aflições pela genuína prática da compaixão.

            Os três humores seriam: Vayu (ou Vata) [ar, vento, ar vital do corpo, humor aéreo ou qualquer afecção mórbida deste]; Pitta [bile, o humor bilioso, secretado entre o estomago e os intestinos; sua qualidade principal é o calor]; Kapha [fleuma]: “Esses ‘componentes’ do corpo estão espalhados pelo corpo inteiro, mas se concentram mais em certos lugares. Assim, vata predomina no sistema nervoso, no coração, no intestino grosso, nos pulmões, na bexiga e na pelve; pitta predomina  no fígado, na vesícula biliar, no intestino delgado, nas glândulas endócrinas, no sangue e no suor; kapha predomina nas articulações, na boca, na cabeça e no pescoço, no estomago, na linfa e no tecido adiposo. Vata tende a acumular-se debaixo do umbigo, kapha acima do diafragma e pitta entre o diafragma e o umbigo. Reencontramos algo semelhante na visão dos gregos sobre os quatro humores, o fleumático, o sanguíneo, o colérico e o melancólico, e as ligações com as estações sazonais de frio, umidade, calor e seco, e os quatro elementos e os temperamentos humanos.

Além dos tres doshas, o Ayur-Veda também admite a existência de sete tipos de tecido (dhatu) e três substâncias impuras (mala). Os dhatus são o plasma sanguíneo, o sangue, a carne, a gordura, os ossos, a medula óssea e o semen. Os malas ou dejetos são as fezes, a urina e o suor. (..) Segundo o Ayur Veda, existem 107 marmans (regiões sensíveis) que são conexões vitais entre a carne e os músculos, os ossos, as articuçaões ou os tendões, ou entre duas veias. (...) Outro conceito importante que o Yoga e o Ayur-Veda tem em comum é o de ojas, energia da vitalidade (...) Ojas diminue com a idade e se reduz em decorrência da fome, da má alimentação, do excesso de trabalho, da raiva e da tristeza (...) As condições opostas geram ojas e garantem assim a boa saúde. Quando ojas fica muito tempo num nível baixo, a pessoa sofre de doenças degenerativas e envelhecimento prematuro. Ojas está presente no corpo inteiro, mas se armazena especialmente no coração, que é também o locus físico da consciência” (Feuerstein, 2006, p. 122-123). Haveria de se incluir a questão dos centros vitais psíquicos, chakras (os sete principais distribuídos ao longo da coluna vertebral), e dos nadis, treze canais ao longo dos quais correm os diversos tipos de força vital (prana)  as técnicas de purificação (em especial a prática do vômito induzido e da limpeza fisica).

            Concluindo esta apresentação resumida de uma cultura médica complexa como a hindu, e relembrando que seu objetivo maior é garantir na boa saúde as condições necessárias para a realização espiritual, haveríamos de incluir a perspectiva da visão do Tantrismo, onde o corpo, longe de ser visto como uma fonte de degradação e oposição ao espírito, era tratado como morada divina e como caminho alquímico para a perfeição espiritual. Tratar-se-ia de obter, a partir do corpo físico, um corpo de Luz, transubstanciado, adamantino (vajra). Nesta perspectiva, “o corpo-mente do ser humano não é o que parece ser: um limitado tubo digestivo ambulante. Basta-nos relaxar ou meditar para descobrir que esse popular estereótipo materialista não é verdadeiro, pois é nessas condições que começamos a perceber a dimensão energética do corpo e o “espaço profundo” da consciência. Quando se dissolvem os limites rígidos que traçamos ao nosso redor, começamos a nos sentir mais vivos e ingressamos num mundo em que as experiências são mais intensas. O relaxamento e a meditação substituem a imagem que normalmente temos do corpo por uma percepção do fato de que nós somos um processo fluídico intimamente ligado a um todo maior e vibrante. Nessa experiência, os limites do ego perdem a sua rigidez. A física quântica nos diz que todas as coisas são interligadas e que a idéia de que “eu” sou uma entidade física isolada não passa de uma ilusão. Diz-nos, além disso, que o chamado mundo objetivo é uma “alucinação”, uma projeção do imaginário ponto de subjetividade que temos dentro de nós. Temos sido muito lentos em assimilar as profundas implicações práticas da visão de mundo físico-quântica, sem dúvida porque ela nos obriga a operar mudanças extensas e profundas no modo pelo qual concebemos a nós mesmos e ao nosso universo. A perspectiva da física, porém, não é tão nova quanto gostaríamos de acreditar” (Feuerstein, 2006, p.461).

Os paradigmas gerais da Medicina tradicional chinesa

            Seus fundamentos podem ser encontrados no livro Nei Ching, atribuído ao Imperador Huang-Ti, 3º milênio a.C. Assim como a medicina hindu, tem uma base metafísica, partindo do princípio da energia cósmica Ki, que flui por canais (os meridianos), sendo captada por determinados pontos distribuídos na pele. O corpo é visto como energia manifesta como matéria densa viva. O organismo seria um complexo metabolizador, que se renova de energia vital através da assimilação dos alimentos, da respiração e das vibrações captadas pelos sentidos. Reencontramos certas semelhanças com a concepção hindu da energia vital prana, que vem do oxigênio, da água e dos alimentos.

            Na cosmogênese sinotaoísta, no princípio havia a unidade Ki, cuja polarização e entrelaçamentos dos princípios opostos e complementares Yin-Yang gera os múltiplos e variados seres manifestos. As vias de energia se dão segundo cinco vias: dentro dos ossos, nos músculos, nos vasos sanguíneos e linfáticos, na região subcutânea e na superfície da pele, estes dois últimos o campo de aplicação da acupuntura, do moxabustão e da prática da massagem do Do-in e Tui-ná, como ativadores da circulação da energia. Teríamos 12 importantes meridianos, cada qual com sua função e associados a doze órgãos, mas o nome do órgão não se refere apenas à sua substância material, mas como órgãos-funções com manifestações energéticas e psicossomáticas. Inclui-se uma dietética, exercícios de Tai Chi, Fitoterapia e treinamento meditativo Tao-in, um processo de mentalização de centros de energia. Encontramos, junto aos princípios Yin-Yang, a noção de cinco movimentos relacionados aos cinco elementos (água-gerador de flexibilidade; madeira–movimento vivo; fogo–movimento; terra-transformação e metal-purificação), em correspondência com os órgãos internos Ghens (rins), Gan (fígado), Xin (coração), Pi (baço/pâncreas) e Fei (pulmão), cada qual com funções próprias (orgânicas, psicológicas, etc.) e com uma exteriorização ao nível dos canais energéticos. Os diagnósticos baseiam-se no exame das cores na face, entrevistas, exame da língua e do pulso (Do–In, 1976, p.13-19; Tabosa, Unifesp, 2010). A noção de saúde e doença teria a ver com a proporção harmônica das polaridades na ação sobre as funções orgânicas, e no lide dos desequilíbrios e bloqueios da força vital encontramos um conjunto de terapias referidas de tonificação e sedação dos processos energéticos.

            Uma primeira observação sobre esses três paradigmas, aqui apresentados de forma bastante simplificados, permite antever de início um aspecto importante: certa afinidade entre a concepção hindu e chinesa, pelo fato de ambas entenderem o corpo humano dentro de uma referência de processo cósmico-espiritual de energias enquanto princípios sutis, dos quais o corpo em sua forma material seria o nível mais denso e grosseiro desse processo. A perspectiva de uma Anatomia e Fisiologia parece ser outra, com significativas diferenças daquela da medicina moderna. Re-olhando essas duas noções, em sua concepção grega original, encontramos no significado do termo Anatomia algo curioso: dissecar, rasgar. Nessa operação de corte para a construção e investigação do objeto “corpo”, ana é um prefixo que designa “através de”, “para cima”, tomos  como “parte, porção, tomo”. O que os gregos entendiam, por exemplo, nesse prefixo “para cima”?  Será que consideravam o corpo, soma, como um conjunto de “partes” enquanto “órgãos”? Órgãos refere-se à organização, à uma ordem, um dos significados do termo “Cosmos”. Será que os gregos não vinculavam a organização do corpo enquanto relacionado a uma organização cósmica maior? Ou seja, será que a própria forma aparente do corpo não refletiria certos princípios cosmológicos mais sutis, certa hieros (sagrado) – arque (princípio)?

            Se olharmos o outro conceito, o de Fisiologia, vemos mais coisas interessantes. Entendida na modernidade enquanto estudo dos processos e atividades orgânicas, vamos encontrar em sua raiz etimológica dois componentes: Fisis e Logia (investigação). Entre os gregos, o fisiologista era considerado “o filósofo naturalista”. Mas o que os gregos entendiam como Fisis, a Natureza? Será que viam a “Natureza” como um “algo aí material, sólido, algo em si, objetivo”? É significativo que por um longo tempo, a ciência moderna da Física propôs a noção de uma “Física” enquanto realidade “material”, na suposição de haver uma substância última – “matéria” que explicaria a “verdade concreta da realidade”. Hoje a Física Quântica, através de suas pesquisas, questiona essa suposição. A “matéria” ora se comporta como partícula, ora como onda, portanto nada daquele esquema simplista, ensinado décadas atrás nos cursos secundários de Química, das moléculas como “bolinhas”, mas o que se observa são campos energéticos sutis, e, o mais curioso, esse comportamento é condicionado pelo próprio observador. Ou seja, não haveria uma “realidade objetiva” enquanto um “algo aí”, externo e independente da observação da mente humana. Isso significa que a idéia de uma Natureza como uma “realidade concreta”, exterior ao observador e “objetiva” seria apenas um constructo de uma certa mentalidade, mas que não encontra respaldo pelas recentes investigações da Física Quântica.

            Para os gregos, Fisis, a Natureza, designava o vasto campo da realidade fenomênica, o Cosmos enquanto vir-a-ser, em seu fluxo de incessantes mudanças, impermanente. E veremos que a noção da impermanência é um dos pilares do treinamento da meditação da Plena Atenção. Assim, toda a realidade existencial, os mundos condicionados, sinônimo de Cosmos/Natureza, tem a característica ontológica da impermanência, nada mais do que processos em incessante surgir e desaparecer. Nessa perspectiva, o próprio corpo também participaria dessa natureza de ser apenas um conjunto de agregados impermanentes, e não um “algo aí concreto”. O que implica que sua Fisiologia enquanto investigação de sua natureza remeteria a um olhar para processos mais sutis do que apenas o de “órgãos e sistemas concretos” aos moldes de uma mecânica, seja ela estática ou dinâmica. E mais, as noções de “natural”, “instinto” precisariam também ser revistas, pois recaem igualmente na idéia de algo aí, concreto, fixo, sobre o qual pouco se pode fazer. É interessante observar como esse mesmo paradigma dicotômico Natureza-Cultura dominou a Antropologia, colocando na Natureza o campo do objetivo e a Cultura como a sobreposição “subjetiva” da produção mental humana sobre o campo da Natureza. Não estamos pretendendo, nem poderíamos, desconsiderar a existência da diversidade dos padrões culturais ao longo da história da humanidade, mas apontando para a questionabilidade dessa dicotomia natural-cultural. E, trazendo de volta ao nosso tema, é possível que a própria noção do corpo como uma máquina de órgãos articulados e movidos pela lei do “instinto  natural de sobrevivência” tenha de ser revisto, pelo fato d que o chamado “instinto natural”  seria  em realidade padrões condicionados que teriam raízes mais profundas. Quais raízes seriam essas? Esse é o tema que os fundamentos da Meditação da Plena Atenção pretende trazer para o diálogo com as ciências médicas. Não se trata de polarizar discussões entre a medicina moderna e as medicinas tradicionais, não há mais tempo para isso, mas conjugar esforços mútuos entre o que é útil em cada uma, na busca de soluções práticas efetivas para a saúde humana.


Os paradigmas gerais da Medicina Homeopática

            Fundada por Samuel Hahnemann, nascido na Alemanha Oriental em 1755, sua história percorre diversos campos de busca e prática médica, durante os quais foi formulando os princípios do que viria a ser a doutrina homeopática. Sua postura filosófica de procura constante da verdade é marcante em sua trajetória e escritos (1). Dotado de forte percepção intuitiva sobre a existência de uma “Ordem da Natureza”, e embasado em seus profundos conhecimentos da Medicina grega – na grande herança de Hipócrates (460-370 a.C.), em seu monumental escrito do Corpus Hippocraticum - retomou deste o conceito de “regulação”, a vis medicatrix naturae: a Natureza e seu poder de conservação de si que é próprio do corpo vivo. Em seus 53 tratados e 72 livros, o conjunto das obras do Corpus Hippocraticum já aponta e descreve a lei dos semelhantes, princípio base da perspectiva homeopática: Similia Similibus Curantur.

            Aplicando a máxima “Sapere aude” (ouse para ser sábio), Hahnemann conjugou o espírito científico da rigorosa investigação dos processos da Natureza (e sua aplicação no domínio específico da natureza humana) com suas experimentações e verificações empíricas ao longo se seus anos de trabalho médico. A Arte de Curar pelo Semelhante é uma aplicação da lei universal do “semelhante atrai semelhante” (similia similibus).
            A Medicina Homeopática estrutura suas noções de saúde/doença (e cura) a partir de alguns princípios básicos (2):
  • Uma visão holística do ser humano segundo três níveis hierárquicos:
            - Mental/espiritual: registra as mudanças de compreensão ou consciência quanto à clareza; racionalidade, coerência e seqüência lógica; atividade criativa para o bem de si e dos outros;
      - Emocional/psíquico: regula as mudanças nos estados emocionais (amor, ódio, sentimentos, paixões)
      - Físico: os diversos sistemas corporais, segundo a importância para o organismo - sistema nervoso, circulatório, endócrino, digestivo, respiratório, excretor, reprodutor, ósseo, muscular (incluindo sexo, sono, alimentação e os 5 sentidos).

      A saúde como um todo significaria: Liberdade do corpo físico em relação à dor, ao se atingir um estado de bem estar; liberdade em relação à paixão no nível emocional, o que resulta num estado dinâmico de serenidade e calma; liberdade em relação ao egoísmo, na esfera mental, o que resulta na total unificação com a Verdade. Vida é criatividade, uma das importantes significações da vida humana, em seu objetivo principal: a realização da Felicidade contínua e Incondicional, realização que no Budismo é alcançar Nibbana, o Incondicionado, superando os ciclos de sofrimento do nascer e morrer (samsara).

  • A sustentação da vida humana (e da vida de modo geral) é dada pelo princípio do Vitalismo: somos dotados de uma Força/Energia vital, que busca se regular em constantes reequilíbrios diante das mudanças externas e internas.

      Em sua visão da complexidade humana, não haveria como isolar saúde/doença como algo restrito a um “corpo”. Crítico da visão da Medicina ocidental sobre o ser humano como um organismo material regido por leis mecânicas, aos moldes de um engenho de sistemas, a Homeopatia busca recuperar a visão das medicinas antigas sobre a natureza holística do ser humano, sem entretanto, ignorar ou desconsiderar as conquistas alcançadas em muitos campos da medicina alopática. Também a noção homeopática de um princípio de Força/Energia vital inteligente reguladora encontra analogias nas doutrinas médicas antigas. No Budismo, essa força/faculdade vital é chamada de jivitindriya, um dos setes fatores mentais (cetasikas) universais, em sua dimensão mental (vitaliza ou mantém os fenômenos mentais associados) e física (vitaliza os fenômenos materiais).

      Se há um princípio vital que busca regular o equilíbrio da condição humana, como compreender as doenças? A medicina homeopática critica a noção alopática de que as doenças se deveriam à ação de agentes externos, os micróbios invasores, para cuja erradicação o grande remédio seriam os medicamentos de base química. Para a Homeopatia, a doença se vincularia à noção de desequilíbrio desse princípio vital, devido à multiplicidade de causalidades. Para sua construção doutrinal, a Homeopatia vai buscar suportes nos conceitos básico da Física; através da carga e do movimento, como partículas e ondas intercambiáveis, o que temos num nível mais sutil são os campos eletrodinâmicos, vibracionais. Cada substância tem uma freqüência ressonante característica pela qual vibra mais, quando estimulada por onda de freqüência semelhante. Na frequência ressonante, a energia ou força do sistema é maximizada em um estado de harmonia; desviando-se da frequência ressonante, mais dissonância ocorre, com queda simultânea de energia. A frequência ressonante do corpo humano seria uma resultante complexa, um processo fluído, flexível, energético, regido por um Plano Dinâmico, campo eletromagnético ou nível da força do organismo humano, em suas dimensões mentais, emocionais e físicas. Tanto para os agentes morbíficos como para os agentes terapêuticos, temos as leis e princípios da ressonância, harmonia, esforço e interferências. O Plano Dinâmico seria o plano da presença da vida, o plano no qual se origina a doença e os mecanismos de defesa. Permeia todos os níveis, é anterior a eles, interage com eles: é o mediador inteligente, o eixo interno dos três níveis do organismo humano, criando a melhor resposta possível de que é capaz no momento. Conforme o estímulo sobre o organismo, haveria uma alteração do grau de vibração no Plano Dinâmico, e com isso uma reação, um ajuste pelo mecanismo de defesa, podendo ocorrer sem mudanças visíveis, ou com processos percebidos pelo indivíduo como sintomas em um ou mais níveis, num período latente, de ajuste do mecanismo de defesa.

      A primeira perturbação ocorre no campo eletromagnético do corpo; a melhor intervenção terapêutica seria aquela que agiria diretamente no campo eletromagnético como um todo, o que fortalecerá diretamente o mecanismo de defesa. O maior desafio seria o de encontrar o agente terapêutico que ressoasse diretamente junto à freqüência resultante do organismo no plano dinâmico. Como a Meditação da Plena Atenção poderia ativar-estimular o Plano Dinâmico? Quando a saúde é boa, o Plano Dinâmico se ajusta naturalmente sem se manifestar; quando a saúde é ruim, o Mecanismo de defesa é acionado quando o limite é transposto, gerando sintomas, que são manifestações de perturbação do Plano Dinâmico e de sua ação, via mecanismo de defesa, tentativa do organismo de curar. Assim, os sintomas não seriam problemas em si mesmos. A terapêutica homeopática, ao invés de tentar suprimir os sintomas, procura afetar diretamente o Plano Dinâmico, através de uma substância que possa produzir no organismo humano uma totalidade semelhante de sintomas e sinais, para a ação do princípio Similia Similibus Curantur. O grau de vibração da substância, ao ser próximo da freqüência resultante do organismo doente, traria o fortalecimento do mecanismo de defesa, através do princípio de ressonância. Para isso, o homeopata procura estudar os próprios sintomas em sua totalidade, incluindo os traços individualizantes, os desvios da norma nos três níveis, detalhados, traços que representam, para a cura, a “freqüência de ressonância” do organismo como um todo. O conhecimento clínico seria o menos significativo. Consideram-se as áreas mais importantes dos sintomas, aquelas que se relacionam com as funções básicas que ocupam a atenção da pessoa: conforto ambiental, comida, sexo, sono, relação com as pessoas amadas, problemas financeiros, trabalho profissional ou doméstico.

      A eficácia dos remédios terapêuticos depende da constante experimentação humana para medicamentos, ou seja, o registro sistemático e exaustivo dos sintomas produzidos pelas substâncias nos humanos saudáveis. Esse era o procedimento e ênfase de Hahnemann. A manifestação do sintoma do paciente e do medicamento se combinam, possibilitando que os princípios de ressonância excitem e fortaleçam o mecanismo de defesa, gerando a cura. Ao invés de suprimir os sintomas, a Homeopatia busca fortalecer o mecanismo de defesa, e este se encarrega da cura. O agente terapêutico agiria tanto a nível químico, quanto como efeito sobre o campo eletromagnético, causado pelo campo eletromagnético correspondente da substância, quando os níveis de vibração forem próximos, tendo a mesma ressonância. Examinaremos em outros capítulos como as intenções volitivas na meditação talvez possam colaborar para sensibilizar as vibrações ressonantes na mente, desobstruindo as impurezas e fortalecendo os fatores saudáveis, luminosos e puros da mente.

      Segundo a Homeopatia, quando o organismo está enfraquecido e sua vibração se dá num nível sensível, três poderosas influências podem agir de modo nocivo: as fortes enfermidades agudas (por herança genética, predisposições – os miasmas – agravados tratamentos errôneos), as terapias supressivas (através dos antibióticos, tranquilizantes, anticoncepcionais, cortisona, hormônios) e as vacinas (aplicadas em populações, sem considerações individualizantes). A séria questão que a Homeopatia coloca sobre as terapêuticas alopáticas generalizantes é que, ao atacarem os sintomas (considerados erroneamente como “o problema”, que o paciente quer se ver livre), constituem-se em choques morbíficos, o que leva o mecanismo de defesa a gerar os “efeitos colaterais”, que são novos sintomas da busca do organismo por um equilíbrio em um nível mais profundo. Com isso, ocorre um deslocamento do centro de gravidade da sensibilidade para um nível mais interno, e a diminuição da ameaça das doenças agudas desloca a perturbação para níveis mais sutis do organismo (por exemplo, o que era um sintoma no nível físico desaparece, e o problema se desloca para uma perturbação no nível mais interno, menos perceptível ou alcançável, como o nível emocional ou mental/espiritual). E com isso, ocorre um aumento de doenças crônicas, de mais difícil tratamento.

      Junto com a necessidade de prognósticos refinados com o paciente, a Homeopatia busca afinar as medicações corretas em suas potencializações devidas, sempre revendo seus efeitos no organismo humano como um todo, e corrigindo suas prescrições ao longo da vida do paciente, ao modo do antigo “médico de família”, padrão de vinculo médico-paciente que vem se perdendo, por conta da hipertrofia dos especialistas e da forte crença no “diagnóstico infalível dos exames clínicos laboratoriais”.

      Evitando cairmos numa perspectiva dogmática de defesa das medicinas alternativas versus exorcismo da medicina alopática, o campo de investigação para a conjunção de terapêuticas eficazes está em aberto. É possível que, como vêm acontecendo nos últimos anos, muitas revisões advenham sobre os modelos de saúde/doença, sobre os processos do sistema imunológico e outros aspectos da saúde humana, e nisso a prática da Meditação da Plena Atenção, mindfulness, atuando sobre os processos mentais aflitivos, vá ocupando um lugar importante como complemento para, num nível mais imediato, ajudar na superação de certos graus de sofrimento, e num nível mais profundo, conduzir para a superação de todo sofrimento, a purificação e libertação da mente, sinônimo de Nibbana. Mas vejamos.

Os Fundamentos da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
e seu lugar na saúde humana

            A Meditação da Plena Atenção faz parte dos ensinamentos trazidos pelo Buddha há 2.500 anos na Índia. Nascido como príncipe Sidarta Gautama no clã dos Shakya, pequeno reino de Kapilavastu, atual Nepal, aos 28 anos viu as quatro cenas que mudariam o rumo de sua vida: a doença, a velhice, a morte e a existência de ascetas serenos. Sensibilizado por essas cenas–espelhos da realidade humana, Sidarta renuncia ao trono de seu pai e parte para a floresta em busca do método de superação do sofrimento humano. Após sete anos de práticas meditativas, libera totalmente sua mente do sofrimento, e formula a chave de todo o seu método em duas sentenças: a existência do sofrimento e a superação do sofrimento. O coração de seu método, por ele realizado, está contido nas chamadas Quatro Nobres Verdades: a existência como insatisfatoriedade-sofrimento; a causa do sofrimento; a possibilidade da extinção do sofrimento e o método prático para a extinção do sofrimento. Como um grande médico, sua descoberta envolve a constatação do sintoma, o diagnóstico, a possibilidade da cura e o medicamento (tanto curativo quanto preventivo).

            Três seriam os níveis do sofrimento: o sofrimento físico do nascimento, doença, velhice e morte; o sofrimento mental de se desejar o que não se tem, gerado e reforçado pela cobiça, e de não se querer o que se tem (as experiências dolorosas), gerado e gerando a aversão, com seus desdobramentos no ressentimento, raiva, ódio e fúria; e o sofrimento mais interior advindo da delusão, e gerado pela ignorância de não se ver a realidade das coisas como elas são. Por não vermos a realidade do corpo e da mente como eles são, desenvolvemos padrões reativos que provocam sofrimento, em suas manifestações de lamentação, tristeza, pesar, depressão, ansiedade, melancolia, ódio, estresse e tantas outras sintomáticas corporais e mentais.

            Os padrões reativos da mente são condicionadores desses sintomas de sofrimento, no sentido de que eles induzem esses efeitos no corpo e na mente, e também são condicionados, no sentido de que eles são produtos de tendências anteriores, que ao encontrarem os alimentos oportunos, se aprofundam e se tornam os condicionadores de reatividades futuras. Passado-presente-futuro se encadeiam em processos repetitivos, criando hábitos e padrões de personalidade. Não teríamos algo “natural ou instintivo”, mas sim padrões de condicionamentos, processos causais. A imperatividade desses padrões é proporcional ao grau de seu enraizamento na mente humana, por sua vez dependente de uma multiplicidade de fatores dinâmicos, mas esses padrões são passíveis de serem transformados, e é aí que entra o treinamento da meditação, como parte do medicamento recondicionador da mente para padrões mais saudáveis. É curioso notar que “medicar” e “meditar” têm a mesma raiz etimológica.

            Sintèticamente, a Meditação da Plena Atenção consiste no treinamento que busca desenvolver as qualidades da concentração, plena atenção e sabedoria, de modo a tornar a mente cada vez mais atenta ao emergir desses padrões condicionadores não saudáveis, e pela não reatividade, compreensão sábia e insights, desengajar a mente dessas reatividades, enfraquecendo esses padrões, substituindo por padrões mais saudáveis, num processo gradual de libertação da mente até a total erradicação das causas do sofrimento, sinônimo do despertar e iluminação. O pressuposto íntimo desse processo é de que a mente em sua natureza última é luminosa, pura, sábia e plena, mas que, devido aos contaminantes da cobiça, ódio e ignorância, se enreda numa teia de ações do corpo, fala e mente que tendem a recriar os frutos dolorosos do sofrimento.

            A tranquilização e concentração da mente (samadhi) correspondem ao treinamento de Samatha, e o cultivo da sabedoria e insight ao treinamento de Vipassana. Se pudéssemos falar de uma “anatomia” nessa perspectiva, o que denominamos de “pessoa humana” seria visto como um estado (ou melhor, processo) existencial formado de cinco agregados: corpo/forma material, sensação, percepção, formações mentais (pensamento, memória, imaginação, etc.) e consciência. O primeiro como corpo (rupa), e os outros quatro como mentalidade (nama). Não se trata, de fato, de uma anatomia no sentido estrito usado pela nomenclatura médica, enquanto cinco partes, mas cinco ângulos com que podemos acessar à nossa experiência existencial. A ênfase está menos numa formulação de categorias-em-si, mas de suportes hábeis (upayas) para o processo de investigação dos nossos processos experienciados, pois o foco central é o conhecimento vivencial desses processos a cada momento, a mente contemplando e investigando a própria mente-corpo em fluxo, já que é nesse fluxo que reside o sofrimento, suas causas e sua superação, e por conseguinte, o campo da saúde do corpo e da mente.

Notas

(1) Sobre a doutrina homeopática, nos valemos das obras:
Doutrina Médica Homeopática, publicado pelo Grupo de Estudos Homeopáticos de São Paulo “Benoit Mure”, 1986.
Homeopatia. Ciência e Cura. George Vithoulkas. São Paulo: Circulo do Livro, 1990.
(2) As formulações que se seguem são resumos literais extraídos da obra acima referida de G.Vithoulkas. Agradeço ao Dr. Walter S. Canoas pelo acesso a estas duas obras, e ao Dr. Mário Sposati, meu médico homeopata e grande amigo de há mais de 35 anos de acompanhamento médico e diálogos que inspiraram algumas elaborações aqui incluídas.

Referências

Eletrônicas


Bibliográficas

Amabis, J. Mariano & Martho, G. Rodrigues. Biologia dos Organismos. Classificação, estrutura e função nos seres vivos. Vol 2. SP: Ed. moderna, 1994.
Cançado, Juracy Campos L. Do-in. Livro dos Primeiros Socorros. RJ: Ground, 1976.
Feuerstein, George. A Tradição do Yoga. SP: Ed. Pensamento, 2006.
Shaker, Arthur. A travessia buddhista da vida e da morte. Introdução a uma Antropologia Espiritual. RJ: Gryphus, 2003.
Tabosa, Ângela. A Medicina Tradicional no Oriente e no Ocidente. (apontamentos). 2º Simpósio Internacional de Medicinas Tradicionais e Práticas Contemplativas, Unifesp, SP, 17-18 setembro 2010.


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Memory and Mindfulness Meditation

Zlatica De Farias*

Núcleo  Neurociências, Mindfulness e Saúde
Casa de Dharma

Dedicated to Dr. Veriano Alexandre, CIREP/USP, Ribeirão Preto
And to all those in search of memories.

Translation: Sarah Jeanne Johnson


“By evoking remembrances (and the past), we add dream-like worth. We are never true historians; we are always something of poets, and our emotion perhaps does not express more than lost poetry.”Gaston Bachelar


The meanings and functions of memory are constructions that have fascinated us for years. After a viral encephalitis which resulted from an “aedes aegypti” (dengue) infection, causing a “loss” in long-term memory (“lasting two hours, days, or years, making sure the autobiographic past and knowledge of the individual are recorded”, Lent 2005), and the deprivation of meanings from one’s autobiographical past for days, we are able to better understand the poetry of Clarice Lispector (1976) in “I am made of urgencies: I fill myself with absences, I empty myself of excess.” We also move closer to what researchers such as Bergson said decades ago, especially regarding the illusion that we only have one identity as long as we remember things.

And as our long-term memories return gradually returned, we were able to experience what Rosenfield (1994) concluded regarding "us not supporting ourselves on set images, but on re-creations – imaginations – through which the past is remodeled in ways appropriate to the present.” Can the reader reproduce the amount of “creation of meanings” that we had to “re-create” so that we could have “our memories”? How much did we have to “create” based on representations that did not come from reminiscences of bodily functions, sensations, emotions, perceptions, mental formations (images, thoughts, memories etc) and types of consciousness originated from each body and mind contact that we had in our previous history (with our knowledge and ideas) and fixed in an area of the brain that has some malfunction? But can we “create” based on data not connected to those reminiscences that would be located in other “neural networks?” And, approaching researchers like Ledoux, can we answer, as we did countless times, if we no longer are who we are if we lose our “neural signature”?

The word memory has its etymologic origin in the Greek word “mnemis”, which bestowed a halo of divinity on this faculty of acquisition, consolidation and evocation of the contacts that the body and or the mind has with an external or internal object, because it referred to the goddess Mnemosyne, the Mother of the Muses that protect History. So we give it the meaning of “the capacity to protect our stories and our history; other people’s stories and history; the world’s stories and histories; and the stories and histories that go beyond the world.” Or, as Monteiro (2006) shows us in a poetic inspiration, “we are the narrators of the story created by us, in us and for us.”

Later, in scholarly Latin, the word memory originates from the prefix "memor" ("the faculty of memory") and from the genitive “ôrîs/os” (“mouth”). We give it the meaning of “the reminiscences that appear from the body and mind and are expressed through the mouth.”

And in this attempt to try and find out the meanings of memory, we were surprised by the etymology of the word "recordar." It comes from the prefix “re” (repetition, return) and the root “cordis/cor” (learn, know/heart). Because the heart was also considered the source of memory in the ancient world, later also being regarded as the source of emotion, memory has imbued with meaning, of “the remnants that arise from the language of the heart.”

But what about the process of mindfulness meditation, what has its years-long practice of building concentration provided us during these weeks and later?

Mindfulness meditation is part of a mental culture practice proposed by the Abhidhamma Psychology model (a theoretical, methodological and technical model whose ancient philosophical and psychological treaties, known as Abhidhamma/ Abhidharma, were compiled from the V century). It consists of a practice of attention and direct observation of bodily and mental processes. It is not widely known in Brazil and is initially based on developing concentration (samatha, “the mental state of being firmly concentrated”). “Concentration could be defined as that faculty of the mind which focuses single mindedly on one object without interruption” (Gunaratana, 1995). After concentration is developed to the point where consciousness is able to focus on a single bodily process (sense attention or selective perception) or mental process (mental attention or selective cognition), a stage begins where concentration and mindfulness develop simultaneously (vipassana, “clear vision,” seeing all processes that happen in the body and mind clearly, distinctly, and directly), which allows us to have mindfulness not as the result of a mere intellectual understanding, but as the direct observation of all and any phenomena happening in our own body and mind. As Shaker put it:

“Insight and mindfulness meditation consists of training the mental faculty of attention, developing it through direct observation of the inner experiences of the body and mind in way that is totally conscious and free of judgment. This training, which also involves, in equal measure, the development of the mental faculty of concentration, allows one to have some distance from the entanglements of mental formations, observing the body from moment to moment (from its different angles: breath, heartbeat, feelings, etc.) and spontaneous thoughts from the brain/mind.” (2010)

For such training and development, we have used the technique of “mindfulness of the breath meditation” for years (ânâpânasati, “mindfulness of the inbreath and outbreath”). Through mindfulness of each inbreath and outbreath, it is possible to observe and investigate body and mind. Buddhadâsa Bhikkhu stated (1988):

“What are the proper, correct, and necessary objects of contemplation every time we breathe in and breathe out? There are four proper objects of contemplation: the secrets of kaya (body), the secrets of vedana (feeling), the secrets of citta (mind), and the secrets of Dhamma. Because these four already exist within us as the sources of all our problems, we must use them far more than any other objects to train and develop the mind”.

Since we began this practice, we have recognized the essential meaning and function of mindfulness meditation. By gradually developing the capacity to sustain mindfulness in our perceptions, from its start to its suppression, it is possible to develop an understanding of bodily and mental phenomena. Perception of these processes grows more and more, from the moment they are triggered by visual, auditory, olfactory, gustative, tactile and mental impressions to the consciousness of each state experienced by the body and the mind.

And to our surprise, this was how the remote memory function started to be recovered, upon realizing the role of mindfulness in the various processes that we were experiencing. Because we have some training in the skill of perception and in the conscious and unconscious processing of bodily and mental states, we noticed how much mindfulness allowed us to store information that was assimilated through the senses. It is as if the mosaic of the perceptions that make up memory could be created not only by the impressions experienced by the body and mind from contact with some external and/or internal object. The possibility of directly observing some bodily functions, feelings, emotions, perceptions, mental formations and consciousness that arise from the mind and from awareness; while we experienced them, they also played a part in building remote memory. And we noticed that the more we were able to sustain our mindfulness of these processes, the greater our long-term storage mechanisms were. We were able to get close to Kandel (2000), a neuroscientist who was prominent in Brazil when our experiences began: “the memory map can only remain stable when attention is present.”

Have you ever noticed how your perceptions of body and mind come about? Have you noticed how “passive” we are when it comes to our perceptions? How much our “mindfulness,” which should be one of the essential conditions to every perception, is nothing but attention to a few impressions experienced by body and mind after each contact with an external or internal object? Have you noticed to what measure we are “partial memory records”, as defined by Sperling? That is, how little our memories are made up of mindfulness of our corporal and mental processes? And, in an attempt to make it sound poetic, that we are “awareness-blind”?

There is some research and there some academic work has been done on cerebral processes produced by mindfulness meditation, specifically on the increase of hippocampal density (Frewen, P.) and of the areas associated with attention (Brefczynski, L.), the responses of the prefrontal cortex (Cheng, R.) and cingulate areas (Corrigan, F. M. and Holzel, B.).

Having experimented with “neuroplasticity” (the “plastic” property of the nervous system – the correlation between the various regions of the brain and the potential for the remaining areas to take over when a specific area is compromised) and its ability to “create” and “re-create” using synaptic connections, studies and research on the active role of mindfulness meditation in intensifying the many mechanisms of memory storage can be one of the objects of our mindfulness. And the beginning...Experiencing mindfulness meditation.

Bibliography

BUDDHADÂSA BHIKKHU. Mindfulness with Breathing: A Manual for Serious Beginners. Boston: Wisdom Publications, 1.997.
DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO NOVA FRONTEIRA. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1.986.
GUNARATANA, Venerable Henepola. Mindfulness in Plain English. Boston: Wisdom Publications, 1.995.
KENDAL, Eric. Em Busca da Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 2.002.
LENT, R. Cem Bilhões de Neurônios: Conceitos Fundamentais de Neurociência. São Paulo: Atheneu, 2.005.
MONTEIRO, Pedro. A Mente e o Significado da Vida. Belo Horizonte: Gutemberg, 2.006.
NYANATILOKA. Buddhist Dictionary: Manual oh Buddhist Terms and Doctrine. Sri Lanka: Buddhist Publication Society, 1.994.
ROSENFIELD, Israel. A Invenção da Memória: Uma Nova Visão do Cérebro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1.994.
SHAKER, Arthur. A Travessia Buddhista da Vida e da Morte: Introdução a uma Antropologia Espiritual. Rio de Janeiro: Gryphus, 2.003.

* Clinical Psychologist. Psychotherapist Specializing in Clinical Psychotherapy for Adults and Couples.
Degree in Choreotherapy – therapy through movement and dance; Junguian Analysis and Symbolic Art Therapy; Couple's Counseling; Family Counseling.

CONSULTÓRIO DE PSICOTERAPIA



a Memória e a Meditação da Plena Atenção (mindfulness)

Zlatica De Farias*

Dedicado ao Dr. Veriano Alexandre, CIREP/USP, Ribeirão Preto.
E a todos aqueles que estão em busca das memórias.

“Evocando as lembranças (e o passado), adicionamos valores de sonho. Nunca somos verdadeiros historiadores; somos sempre um pouco de poetas, e nossa emoção talvez não expresse mais que a poesia perdida”. Gaston Bachelar

Os significados e as funções da memória são construções que nos tem fascinado há anos. Após uma encefalite virótica, em consequência de uma contaminação pelo “aedes aegypti” (dengue), nos levando a experienciar uma “perda” da memória de longa duração (“dura de duas horas, dias ou anos, garantindo o registro do passado autobiográfico e dos conhecimentos do indivíduo, Lent, 2.005) e a privação dos significados do passado autobiográfico por dias, pudemos nos aproximar da poética de Clarice Lispector (1.976) no “Sou composta por urgências: me entupo de ausências, me esvazio de excessos”. Também, nos tornamos próximos do que pesquisadores como Bergson afirmaram há décadas, especialmente no que se refere à ilusão de que só temos uma identidade porque nos lembramos.

E com a gradual progressão em que nossas memórias de longa duração iam sendo resgatadas, pudemos experienciar o que Rosenfield (1.994) concluiu quanto a “nós não nos apoiamos em imagens fixas, mas em recriações - imaginações – pelas quais o passado é remodelado em formas apropriadas para o presente”. O leitor pode reproduzir o quanto de “criações de significados” tivemos que “recriar” para que pudéssemos ter “nossas memórias”? O quanto tivemos que “compor” a partir de representações não advindas das reminiscências de funções corporais, sensações, emoções, percepções, formações mentais (imagens, pensamentos, memórias, etc) e consciências originárias de cada contato corporal e mental que tivemos em nossa história pregressa (com nossos conhecimentos e idéias) e fixadas em uma área cerebral que apresentava algumas disfunções? Mas “compor” a partir de dados não relacionados a essas reminiscências que estariam localizados em outras “redes neurais”? E aproximando-se de pesquisadores como Ledoux, pode se responder, como o fizemos por inúmeras vezes, se deixamos de ser quem somos se perdemos nossa “assinatura neural”?

Pesquisando a etimologia de memória, essa origina-se inicialmente do grego “mnemis”, que dava à esta faculdade da aquisição, consolidação e evocação dos contatos que o corpo e/ou a mente fizessem com algum objeto externo ou interno um halo de divindade, pois referia-se à Deusa Mnemosyne, Mãe das Musas que protegem a história. A significamos, então, como “a capacidade de protegermos nossas estórias e história, as estórias e história do outro, as estórias e história do mundo, e as estórias e história do que vai para além do mundo”. Ou como nos leva a uma inspiração poética Monteiro (2.006), “somos os narradores da história criada por nós, em nós e para nós”.

Posteriormente, no latim erudito, memória origina-se do prefixo “memor” (“a faculdade da memória”) e do genitivo “ôrîs/os” (“boca”). A significamos como “as reminiscências que surgem do corpo e da mente, e se fazem expressar pela boca”.
E nesse nosso tratar de descobrir significados de memória, ainda nos foi possível o surpreender com a etimologia de “recordar”. Originando-se do prefixo “re” (“repetição, retorno”) e do radical “cordis/cor” (“aprender, saber”/“coração”), e tendo sido o coração também considerado como a sede da memória no mundo antigo, vindo posteriormente a ser também a sede das emoções, significamos memória como “as reminiscências que surgem da linguagem do coração”.

Mas e o processo da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness), o que sua prática por anos na construção da concentração nos possibilitou nessas semanas e nas fases seguintes a essas?

Fazendo parte de uma das práticas de cultura mental propostas pelo modelo de Psicologia Abhidhamma (modelo teórico, metodológico e técnico cujos tratados filosóficos e psicológicos antigos conhecidos como Abhidhamma/Abhidharma foram compilados desde o séc. V a.C.), a Meditação da Plena Atenção (Mindfulness) consiste de uma prática da atenção e da observação direta dos processos corporais e mentais. Ainda pouco conhecida em nossas terras, fundamenta-se inicialmente no desenvolvimento da concentração (samatha, “o estado mental de se estar firmemente fixado”). “A concentração pode ser definida como aquela faculdade da mente na qual o focamento em um objeto se dá sem interrupção e numa experienciação a mais próxima das consciências advindas do corpo e da mente, enquanto essas se dão” (Gunaratana, 1.995). Após o desenvolvimento da concentração, a ponto da consciência focalizar-se em um único processo corporal (atenção sensorial ou percepção seletiva) ou mental (atenção mental ou cognição seletiva), passa-se ao desenvolvimento da concentração e da plena atenção simultaneamente (vipassana, “a visão clara”; ver claramente, distintamente, diretamente todos os processos que venham a se dar no corpo e na mente), o que nos possibilita a plena atenção não enquanto o resultado de uma mera compreensão intelectual, mas a observação direta de todo e qualquer fenômeno que se dá em nosso próprio corpo e mente. Como Shaker colocou:

“Mindfulness, a meditação da plena atenção e do insight, consiste no treinamento da faculdade mental da atenção, desenvolvendo-a pela prática da observação direta das experiências internas do corpo e da mente de maneira completamente consciente e sem julgamentos. Este treinamento, que envolve igualmente o desenvolvimento da faculdade mental da concentração, permite que a pessoa se posicione à certa distância dos enredos das formações mentais, observando momento a momento o corpo (em seus vários ângulos – como a respiração, batimentos cardíacos, sensações, etc.) e os pensamentos espontâneos do cérebro/mente” (2.010).

Para tal treinamento e desenvolvimento, utilizamos por anos a técnica da “Meditação da Plena Atenção na Respiração” (ânâpânasati, “plena atenção na inspiração e na expiração”). Através da plena atenção a cada inspiração e expiração, é possível observarmos e investigarmos o corpo e a mente. Como afirmou Buddhadâsa Bhikkhu (1.988):

“Quais são os objetos de contemplação apropriados, corretos e necessários a cada instante enquanto inspiramos e expiramos? Aqui são quatro os objetos de contemplação apropriados: os segredos de ‘kâya’ (o corpo), os segredos de ‘vedana’ (as sensações/emoções), os segredos de ‘citta’ (a mente), e os segredos de ‘dhamma’ (a natureza fundamental das coisas). Porque esses quatro objetos já existem dentro de nós e são as raízes de todas as dificuldades e problemas, podemos, então, utilizá-los mais do que a qualquer outro objeto para treinarmos e desenvolvermos a mente”.

Desde iniciarmos tal prática, percebemos o fundamental significado e função da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness). Com o gradual desenvolvimento da habilidade de sustentarmos a plena atenção em nossas percepções, de sua originação até sua supressão, nos é possível o desenvolvimento da compreensão dos fenômenos corporais e mentais. É possível, desde seus desencadeamentos a partir das impressões visuais, auditivas, olfativas, gustativas, táteis e mentais, até as consciências de cada estado experienciado pelo corpo e pela mente, percebermos cada vez mais esses processos.

E qual não foi nossa surpresa, assim que a função da memória remota foi sendo recuperada, ao percebermos o papel da plena atenção nos vários processos que experienciávamos.

Por termos alguns treinamentos da habilidade da percepção e do processamento consciente e inconsciente de estados corporais e mentais, percebemos o quanto a plena atenção nos possibilitou condições para que o armazenamento das informações que eram assimiladas através dos sentidos pudesse se dar. É como se o mosaico das percepções que compõem a memória pudesse ser criado não apenas pelas impressões que o corpo e a mente experienciavam a partir do contato com algum objeto externo e/ou interno. A possibilidade da observação direta de algumas das funções corporais, das sensações, das emoções, das percepções, das formações que provem da mente e das consciências, enquanto as experienciávamos, também participava da construção da memória remota. E quanto mais sustentávamos a plena atenção nesses processos, percebemos como maior eram nossos mecanismos de armazenamento de longo prazo. Pudemos nos aproximar de Kandel (2.000), neurocientista que estava em evidência no Brasil quando do início dessas nossas experienciações: “o mapa da memória só se mantém estável quando há atenção”.

O leitor já pôde observar como se dão suas percepções do corpo e da mente? Pôde observar o quanto somos “passivos” em nossas percepções? O quanto nossa “plena atenção”, a qual deveria ser uma das condições essenciais a toda e qualquer percepção, não passa de uma atenção a algumas impressões que o corpo e a mente experienciam após cada contato com um objeto externo ou interno? Pôde perceber o quanto somos “relatos parciais de memórias”, como nos aponta Sperling? Ou seja, o quão pouco nossas memórias são constituídas da plena atenção aos nossos processos corporais e mentais? E numa tentativa de tornar poética nossa fala, o quanto somos “cegos de atenção”?

Algumas são as pesquisas e trabalhos desenvolvidos sobre os processos cerebrais produzidos pela Meditação da Plena Atenção (Mindfulness). Em especial, quanto ao aumento da densidade hipocampal (Frewen, P.) e das áreas associadas com a atenção (Brefczynski, L.), e as respostas do córtex pré-frontal (Cheng, R.) e áreas cinguladas (Corrigan, F. M. e Holzel, B.).

Tendo como experienciação a “neuroplasticidade” (a propriedade de “plasticidade” do sistema nervoso – a interrelação existente entre várias regiões cerebrais e o potencial de áreas remanescentes assumirem o controle quando uma região específica for comprometida) e a sua possibilidade de “criação” e de “recriação” a partir das conexões sinápticas, que estudos e pesquisas como o papel ativo da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness) na intensificação dos vários mecanismos de armazenamento da memória possam ser um dos objetos de nossa “plena atenção”. E o começo... Experienciar a Meditação da Plena Atenção (Mindfulness).

Referências Bibliográficas:
BUDDHADÂSA BHIKKHU . “Mindfulness with Breathing: A Manual for Serious Beginners” Boston: Wisdom Publications, 1.997.
“Dicionário Etimológico Nova Fronteira”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1.986.
GUNARATANA, Venerable Henepola. “Mindfulness in Plain English”. Boston: Wisdom Publications, 1.995.
KENDAL, Eric. “Em Busca da Memória”. São Paulo: Companhia das Letras, 2.002.
LENT, R. “Cem Bilhões de Neurônios: Conceitos Fundamentais de Neurociência”. São Paulo: Atheneu, 2.005
MONTEIRO, Pedro. “A Mente e o Significado da Vida”. Belo Horizonte: Gutemberg, 2.006.
NYANATILOKA. “Buddhist Dictionary: Manual oh Buddhist Terms and Doctrines”. Sri Lanka: Buddhist Publication Society, 1.994.
ROSENFIELD, Israel. “A Invenção da Memória: Uma Nova Visão do Cérebro . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1.994.
SHAKER, Arthur. “A Travessia Buddhista da Vida e da Morte: Introdução a uma Antropologia Espiritual”. Rio de Janeiro: Gryphus, 2.003.

*Psicoterapeuta com Especialização em Psicoterapia Clínica do Adulto e do Casal.
Formação em Coreoterapia – terapia do movimento e da dança; AnáliseJunguiana e Arteterapia Símbólica; Terapia do Casal; Terapia Familiar.

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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness), Neurociências e Saúde:

1

abrindo perspectivas

Arthur Shaker Fauzi Eid
Casa de Dharma - SP

Este texto traz reflexões sobre as interfaces entre a Meditação da Plena Atenção (Mindfulness), as Neurociências e a Psicologia no campo da Saúde, a partir dos frutos dos cursos, de mesmo nome, iniciados em setembro de 2010, na Casa de Dharma, com duração de um ano, desenvolvido em equipe, e dirigido a profissionais da área de saúde (médicos, psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, etc.), bem como a interessados.






Não há concentração sem sabedoria
Não há sabedoria sem concentração.
Aquele que tem ambos
está próximo da paz e da emancipação.

                                                      Dhammapada



Vipassana e Samatha:

A meditação ensinada pelo Buddha


O que é a meditação Vipassana e Samatha? Por que meditamos?

Meditamos para purificar a nossa mente da cobiça, do ódio e da ignorância, que nos mantém no sofrimento do ciclo de nascimentos e mortes, o Samsara. Purificando, libertamos a mente. Isto é Nibbana.

Samatha é a meditação que treina nossa mente a obter tranquilização e concentração, usando um foco determinado e procurando manter a atenção nesse foco. A respiração, mas não apenas a respiração, é um dos importantes focos referidos pelo Buddha. Mas apenas concentração e tranquilização não são suficientes. Ao sairmos do estado concentrativo, as impurezas ressurgem. É preciso praticar Vipassana.

Vipassana é a meditação que treina nossa mente a ver a realidade com clareza, como ela é: insatisfatória (dukkha), impermanente (anicca), destituída de substancia própria (anatta). Vendo diretamente que nosso corpo e mente têm estas três características, cultivamos o não-apego, a amorosidade e a sabedoria.

Samatha e Vipassana são os meios hábeis da meditação do Budismo Theravada, as duas asas do vôo de libertação.

Saiba mais em:

Bhante Henepola Gunaratana. Mindfulness in Plain English. USA: Wisdom, 2002.

Bhikkhu Bodhi. Dois Estilos de Meditação Vipassana (2000). http://www.acessoaoinsight.net/

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Sobre a prática de meditação budista Vipassana, grupos, retiros, textos, atividades, veja em:

http://casadedharmaorg.blogspot.com/

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A Fisiologia da Meditação

É possível misturar Yoga e meditação budista?



Bhante Yogavacara Rahula
The Bhavana Magazine, vol. 6 no. 1, Inverno 2005, USA
Tradução: Arthur Shaker – Casa de Dharma


Tem sido uma crença largamente sustentada entre os budistas Theravada tradicionais que a prática de yoga e o Budismo não se misturam – ou não deveriam ser misturadas. A Yoga provém dos Vedas e da tradição Hindu, com sua crença central no atman ou supremo self, o que parece ser diametralmente oposto ao ensinamento do Buddha sobre anatta ou o não-self. Além disso, existe o estigma do Buda ter praticado yoga como parte da auto-mortificação, e depois tendo ao final rejeitado a auto-mortificação como algo fútil. Também não ajuda o fato, no Ocidente, da yoga ser praticada principalmente como um sistema de exercícios para a saúde, a energia, ou o relaxamento, para não mencionar a boa aparência, como é visto nos inúmeros vídeos, nas coloridas revistas e na infinidade de declarações de celebridades.

Em alguns centros de meditação vipassana existem regras contra os exercícios de yoga durante os retiros intensivos. Tais exercícios são considerados uma distração para o puro focamento interior, ou uma fuga do lide com a dor física de uma longa meditação sentado, ou do lide com o tédio. Eu mesmo experienciei estas atitudes vindas de outros, durante meu treinamento inicial na Ásia, e também quando comecei a ensinar os retiros de vipassana nos quais incluí alguns exercícios e respirações yóguicas. Pode haver certa verdade na idéia de que algumas práticas de yoga podem não ser aplicáveis a algumas formas de meditação budista. Ainda assim, isso não significa que devamos “jogar a criança fora junto com a água do banho”.

O próprio Buddha, em trechos de abertura de alguns suttas importantes em Pali, recomendava sentar com as pernas cruzadas (se presume que seja a postura de yoga do lótus completo), e manter a espinha ereta quando se inicia a meditação sentado. E algumas outras pequenas recomendações referentes às condições físicas específicas (além da boa saúde e meditação andando) são mencionadas nos textos em Pali, o mais antigo dos ensinamentos do Buddha. Na escola Nyingma do Budismo Tibetano, um sistema de exercícios de conscientização física, chamado Kum Nye, tem sido desenvolvido e ensinado aos praticantes ocidentais. Muitos budistas chineses praticam T’ai Chi, Qi Gong e outras artes marciais. Mas, por outro lado, o exercício físico como um suporte para o desenvolvimento meditativo-espiritual tem sido largamente negligenciado por budistas, e algumas vezes olhado com desdém. Isto tem levado alguns meditantes budistas sinceros a se tornar “yogis reservados”, que não querem ser vistos fazendo yoga.

Crescendo o reconhecimento

Ainda assim, o reconhecimento e a popularidade da prática do Hatha Yoga entre meditantes budistas ocidentais vêm aumentando. Alguns poucos anos atrás, a importante revista Yoga Journal publicou um vasto artigo sobre a prática de yoga para meditantes budistas. Mesmo alguns proeminentes professores ocidentais do Dharma têm recentemente se manifestado com apoio a esta prática.

Esta prática circunscreve-se basicamente à noção da yoga como um sistema de benéficos exercícios corporais e respiratórios, de modo a promover a saúde, a cura de problemas físicos, a incrementar a energia física e assim por diante, todos os quais são saudáveis para a meditação. Meditantes antigos, assim como os iniciantes que sofreram de rigidez, preguiça, corpos doentes, agitação ou mentes sonolentas experimentaram notáveis, e algumas vezes estupendas melhoras em suas meditações após praticarem exercícios de yoga, mesmo que por um curto período de tempo.

Para sermos corretos, a yoga é uma antiga ciência espiritual do corpo e da mente, que tem também como seu objetivo, assim como o Budismo, a iluminação e moksha (a libertação das repetidas rodas de nascimento e morte no samsara). E análogo ao Budismo, a yoga tem sua própria versão do óctuplo caminho – Ashtanga Yoga (a Yoga dos oito ramos). Asana e pranayama (a postura e o controle da respiração), que se refere à yoga popular, são o terceiro e quarto estágio do caminho óctuplo. Elas precedem as elevadas “práticas interiores” da concentração e meditação. A purificação, o fortalecimento e o equilíbrio da respiração, da circulação, dos sistemas nervoso e glandular são vistos como o pré-requisito necessário para que a meditação profunda progrida de modo estável rumo à realização e à iluminação. Se a meta Hindu-yoga da auto-realização e moksha é igual à iluminação e liberação budista, isto é algo para além do escopo deste artigo, e bem poderia ser um tema de debate entre os eruditos.

O que provavelmente não é uma questão de debate é a conexão entre corpo e mente, ao menos no nível relativo em que a maioria de nós vive e medita na maior parte do tempo. O corpo influi na mente e a mente influi no corpo. Quando você está doente, com uma dor crônica, ou se sentindo fraco, você sente mais dificuldade de pôr esforço para meditar. Se o corpo é rígido, com uma pobre circulação de sangue e de força vital; se você não consegue manter a espinha ereta, e sentar-se é desconfortável, então a meditação é menos proveitosa, mais dolorosa, desencorajante, e seu progresso será lento. Apenas aqueles que já atingiram um alto grau de desenvolvimento meditativo podem talvez transcender esta relação corpo/mente.

Dor física e letargia são os dois maiores obstáculos que emperram o iniciante na meditação. Uma prática regular de Hatha Yoga pode ajudar a corrigir e aliviar alguns dos obstáculos físicos e bloqueios energéticos que tornam a meditação mais difícil do que precisaria ser. (E isto também se aplica às outras disciplinas do corpo/energia, como o T’ai Chi e Qi Cong, ambos os quais vêm também ganhando um modesto número de seguidores entre os meditantes budistas do Ocidente).

Plasma Cósmico

O maior objetivo ou efeito da Hatha Yoga é purificar e condicionar o corpo/ mente/ sistema nervoso, de tal modo que ele se torna um veículo propício para a prática da meditação. A meditação acontece através do sistema nervoso. A mente é afetada pelo estado do sistema nervoso. A purificação e o fortalecimento do corpo permite que você progrida na meditação sem os indevidos obstáculos físicos como a circulação pobre, a inabilidade de manter a coluna ereta, a dor de juntas duras ou músculos tensos, baixa energia e assim por diante. A Hatha Yoga ajuda a gerar e a circular uma generosa quantidade de força vital, chamada prana ( ou chi em chinês) por todo o sistema corpo/ mente/ sistema nervoso.

Você pode pensar em prana como a eletricidade cósmica invisível que pervade o universo e sustenta todas as formas vivas. Cada estrela é um sol e todas as suas energias combinadas pervadem todo o sistema solar. Como há milhões de sóis pelo universo, não é difícil imaginar este conceito de prana. Todos sabemos o que acontece quando o contato com a luz solar é interrompido por um tempo muito longo. O prana não é oxigênio, hidrogênio ou nitrogênio, mas é o que dá vida a estes elementos essenciais, que mantêm nossas células vivas.

O prana é referido na yoga como o “Plasma Cósmico”. Nosso corpo, ou qualquer corpo material, é feito de bilhões de células. A força vital prânica tem de passar por cada célula para mantê-la energizada. É análogo ao processo como uma bateria é mantida carregada pela estável corrente fluindo do polo negativo para o positivo. Se o fluxo de corrente for interrompido, a bateria perde seu poder e descarrega. Doença e dores, e mesmo problemas mentais podem surgir quando a força vital é insuficiente e não está circulando apropriadamente para manter as defesas do corpo e outras funções vitais. Os exercícios físicos e respiratórios na Hatha Yoga são indicados para manter esta força vital prânica fluindo pelo corpo de modo harmonioso e para alcançar um perfeito equilíbrio.

O corpo recebe a maior parte deste prana através do processo respiratório. Quantidades menores provém também através da comida e da água que ingerimos. O prana circula através do corpo por inumeráveis e invisíveis canais sutis chamados nadis, que permitem que a força vital chegue a todas as áreas e células do corpo. Na anatomia da Yoga, esses nadis passam através do maior nervo pléxico (como o plexo solar) situado na coluna. Estes nervos pléxicos estão associados a centros de energias chamados chakras, os quais têm características emocionais e psíquicas associadas a eles.

A circulação do prana se torna inadequada e inibida devido à respiração pobre e superficial, à postura curvada, a rigidez e a falta de flexibilidade dos tecidos musculares e das juntas. O fluxo de prana também é afetado pelas emoções negativas como a raiva, a luxúria, o estress, a ansiedade e o medo. Quando o prana é inadequado, perturbado ou preso, pode surgir todos os tipos de dores e problemas psicológicos. Restabelecer um fluxo livre e adequado desta força vital é da maior importância para a saúde global do corpo/ mente/ sistema nervoso. Isto é verdadeiro e pertinente principalmente para as pessoas que estão começando a meditar, ou que têm meditado, mas sentem que seu progresso está estagnando ou decaindo; eles estão meditando mais, porém usufruindo menos.

Três partes

O princípio básico da respiração yóguica é aprender como respirar nas três principais partes dos pulmões. Isto é chamado a respiração nas três partes ou a respiração completa (vibhaga pranayama). Os pulmões têm três lóbulos principais: o inferior ou lóbulos abdominais, o médio ou lóbulos intracostais e o superior ou lóbulos claviculares. Cada um desses lóbulos afeta o fluxo da força prânica vital para uma parte específica do corpo. O ar nos lóbulos inferiores afeta o fluxo do prana para a pélvis, quadris e pernas; a respiração do lóbulo médio afeta toda a parte do tronco do corpo e os órgãos vitais ali alocados; a respiração no lóbulo superior envia para o pescoço, cabeça/ cérebro e os braços. Se nós não respiramos suficientemente nestes três lóbulos, estas partes corporais correspondentes não recebem força vital suficiente para um funcionamento conveniente. Como resultado, muitos problemas associados podem surgir.

É fato que a maioria das pessoas, em condições normais, respira usando apenas um décimo da capacidade pulmonar; usualmente apenas uma pequena porção nos lóbulos inferiores e médios. Raramente o ar chega até os lóbulos superiores, a não ser que se esteja fazendo um forte esforço. A Natureza fez os pulmões em seu tamanho por uma boa razão: para usar! Mas devido às posturas curvadas e ao estress moderno, às neuroses e outros estados emocionais confusos e turbulentos, a respiração na maioria das pessoas é curta, rápida e superficial.

Por causa da respiração curta e superficial, o corpo precisa respirar rapidamente, de modo a trazer mais oxigênio para manter as células vivas. De um ponto de vista da yoga, isto não é saudável. A respiração saudável é a lenta, profunda e completa, a qual irriga uniformemente todo o corpo (incluindo o cérebro) com ondas suaves de eletricidade cósmica. O ritmo ideal de respiração é: quatro a oito segundos para inspirar nos três lóbulos, prender a respiração por três segundos (para permitir a completa absorção do oxigênio no sangue), permitindo a expiração entre quatro e oito segundos, e pausando entre um e dois segundos antes de inspirar novamente.

Treinando-se a respirar desse modo, mesmo que por três ou cinco minutos, permite trazer mais oxigênio e força vital, e melhor distribuição pelo corpo de uma maneira mais relaxada e branda. Como resultado, o ritmo da respiração e do coração diminuem. Esta é uma das principais razões pela qual os yogis praticam a respiração pranayama – para regular, purificar e diminuir a respiração, de modo a facilitar a prática da meditação profunda. Respirar nesta maneira regular também ajuda, enquanto uma técnica inicial de concentração, a trazer a atenção para dentro, tirando a mente do mundo exterior e dos nossos pensamentos.

Além da respiração profunda, o corpo em si precisa ser forte e flexível de modo a poder sustentar e distribuir a força vital de uma maneira a mais efetiva, especialmente em termos de apoio à meditação.

Asana (literalmente “sentar firme”) é a terceira etapa do óctuplo caminho da yoga. Tradicionalmente, esta postura sentada é uma das várias posições sentadas de pernas cruzadas, especificamente o padma asana ou postura de lótus. Para desenvolver a concentração profunda (samadhi), o corpo deve ser mantido estável, com a coluna ereta, por longos períodos de tempo (de uma a três horas). Isto é para que a respiração e a energia prânica possam fluir livremente, permitindo que a mente se torne calma, concentrada e focada. Mas, se as juntas e os tecidos musculares forem rígidos e inflexíveis, então o sangue e a força vital terão dificuldades de penetrá-los. Torpor, desconforto e dor surgirão facilmente, para perturbar a mente, bloqueando a concentração.

É aqui que entram os exercícios de yoga.

A Plena Atenção Fluente

Existem dois principais modos de se fazer os exercícios de Yoga. As posturas podem ser sustentadas por certo período de tempo, usualmente de 30 segundos a três minutos; ou podem ser feitas com movimentos rítmicos em coordenação com a respiração lenta e profunda. Neste último método, adota-se uma posição com uma inspiração lenta (4 a 6 segundos), mantendo a posição com a respiração por alguns momentos, e então retornando à posição inicial ou à uma direção oposta com uma expiração lenta (4 a 6 segundos). Você faz uma pausa por um momento ou dois, e então a seqüência é repetida duas vezes mais, num total de três repetições. Então, você faz uma longa pausa para relaxar e sentir as sensações corporais sutis, antes de ir para diferentes exercícios feitos no mesmo modo fluente e plenamente atento.

É este estilo de praticar os exercícios de yoga, acompanhados com a respiração lenta e profunda, que eu concluí ser de grande benefício, especialmente para a prática da meditação vipassana focada no corpo. A consciência da respiração e do corpo é a primeira fundação da plena atenção. Coordenar a respiração regular e lenta com a repetição de movimentos simples de se curvar e alongar gera um poderosa, mas acalmante corrente de sensação de força vital, que pode ser sentida claramente. Tranqüiliza o sistema nervoso naturalmente e ajuda a mente a se tornar calma e concentrada. Se praticada imediatamente antes de sentar-se em meditação, isto gera uma consciência do corpo respiratório suave e boa. Você se sente bem assentado, criando o espaço para a meditação profunda, ou mesmo ocupando efetivamente a almofada já em meditação.

Em Yoga, o corpo é visto como um templo, uma vez que ele tem que estar preparado o suficiente para sustentar o desenvolvimento da consciência espiritual. A mente deve funcionar através do corpo/mente/sistema nervoso, de modo a experimentar e compreender com acuidade o mundo condicionado em sua tríplice característica (anicca [impermanência], dukkha [insatisfatoriedade], anatta [não-eu]), de modo a transcender o apego e o agarrar-se. Se a respiração e a circulação forem falhas, isto atrapalhará o sistema nervoso e outros órgãos vitais. Isto, por sua vez, fará surgir muitas perturbações na mente e no corpo. Isto dificulta o desenvolvimento da plena atenção, da concentração e da sabedoria.

Isto é, em resumo, a fisiologia da meditação. Isto é o benefício da yoga. Devido ao pequeno espaço, só é possível dizer um pouco sobre este tópico. Há outros aspectos da yoga que oferecem técnicas que podem ser benéficas para qualquer um, especialmente os iniciantes, e praticantes de meditação de todo tipo. Convém notar que nem todos talvez precisem destas técnicas. Buda nos lembra que nunca devemos negligenciar a meditação interior ou profunda por causa de uma obsessiva atenção em purificar o corpo. Em todas as coisas, deve-se encontrar o caminho do meio.